sexta-feira, março 22, 2024

Anatomia dos 4kgs…



O rascunho deste texto sobrevive nas entranhas do blogue desde o verão quente de 2014, e voltei a pegar nele porque me tenho questionado sobre o que aconteceu a todos aqueles rostos esquálidos que vi nos corredores do Santa Maria, quando eu própria lá andava em desequilíbrio.

O que fizeram esses desequilíbrios de nós? Quem teríamos sido sem a dismorfia, sem a ausência de autoestima enquanto construíamos adolescentes e nos preparávamos para ser mulheres inteiras?

Quem somos hoje, duas décadas depois? Pessoas equilibradas ou como antigos dependentes a um evento de perder a noção espacial e todo e qualquer reflexo passar a ser um casa de espelhos destorcidos capaz de nos enlouquecer?

Há uma década, a minha pele parecia-me apertada tal como me parece agora.

Na altura não tinha balança em casa e pesei-me no ginásio, tinha mais 4kgs do que o meu corpo pós-adolescente usou durante os meus 20’s.  A ideia tornou-se uma obsessão. A obsessão com os 4kgs. Eu sentia-me mais pesada, mas era uma abstração, agora que era um número, não parou de me perseguir, como dois sacos de arroz presos a cada pé.

Passei a adolescência entre psicólogo e psiquiatra, entre o prozac e a anemia. Entre ciclos de jejum e festins alimentares. Anos a habitar um corpo que eu resolvi matar à fome porque a imagem que eu tinha de mim era mais frágil, mais quebradiça.

Porque eu ocupava demasiado espaço, nunca fui delicada, sempre tive ombros largos e após uma infância muito próxima da hiper actividade evoluí para uma adolescência melancólica e apática com pouca energia para viver.

Há 10 anos, como agora, uma parte racional do meu ser não queria saber disso, observava o mundo de um outro angulo. A menina de 15 anos, essa estava e está assustada, bastam 4kgs mais persistente para que essa construção, essa persona confiante e equilibrada se sinta ameaçada. Que em alguns momentos na vida eu sinta que posso mesmo perder o controlo dos dias e estar novamente só no escuro a desejar intensamente ter um ar pálido, ossos salientes...

Todos esses sentimentos num mundo completamente obcecado com o comer. Com as televisões pejadas de Master chefs, os restaurantes sorrindo com caras Gourmet, o mundo dos vinhos a convidar à constante degustação eu aterrorizada com o simples facto de que tenho de comer para viver.


Agora como nessa altura não estou gorda. Continuo apenas pesada para aquilo que eu acho que deveria ser. Esse é um conceito que sempre terei distorcido. Tenho 40 anos. Agora, como quando tinha 15 não acho que seja influenciada pelos padrões de moda vigentes, não sigo influencers nem me quero parecer com nenhuma estrela. Mas "Nothing Tastes As Good As Skinny Feels"o mantra dos 90´s continua-nos nos ossos.

Aos 40, como aos 15 o controle que eu devia ter do meu peso continua a ser uma metáfora desaforada daquilo que devia ser o meu controlo da vida, num sistema complexo de esforço e recompensa, de ato e consequência.

A anatomia dos 4kgs não se confere numas calças apertadas, nem em cortar nos hidratos de carbono ou correr menos para levantar pesos e estimular o metabolismo. Os 4kgs são uma ferida antiga, uma cicatriz que me lembra que o equilíbrio da nossa mente é tão ténue que às vezes duvido que possa realmente existir.

sexta-feira, março 15, 2024

Viver com os outros...

Primeiro habitamos um corpo, depois uma casa, uma rua, uma vila, uma região, um país e o mundo.
Habitar, não quer dizer existir, nem fazer parte. Podemos viver a vida todo num corpo que ignoramos, numa terra que desconhecemos, viver sem nos envolvermos numa comunidade. Estamos, ocupamos espaço.

Eu preciso de habitar espaços que me reflictam. Um corpo que não se dissocie da minha mente, casas cujas paredes me relaxem perante a visão de coisas familiares, terras que possam matar a sede de estar só ao mesmo tempo que alimentam a fome de multidão.

A terra pequena não faz uma coisa nem outra. Nunca estamos sós numa rede familiar que se ocupa de nós, e nunca estamos emersos numa multidão que não existe. Um paradoxo, aqui onde me devia sentir relaxada e descansada sinto-me mais cansada que nunca.

As casas que são habitadas por várias pessoas nunca caiem no esquecimento dos dias, não há penumbras familiares e os objectos nunca são abandonados à mercê do tempo. A co-vivência em consciência obriga-nos a pensar no espaço dos outros e nunca termos um momento de autêntica redenção. O deixar estar fora da ordem universal, viver com os outros é manter a vida arrumada numa certa disposição.

Não se deixa o jantar para um tempo indefinido, nem se abre uma garrafa para degustar a solidão quando há com quem a partilhar. O rádio luta com a televisão, as janelas trocam-se com portas na luta das correntes de ar que não agradam a todos.  E morrem-nos as brisas frescas na pele trocadas por ares estagnados.

A falta que nos faz o silêncio...








sexta-feira, dezembro 29, 2023

Sobre as ruínas...

Não a quis ver no caixão.

Não vejo ninguém, olho para o lado. De que nos serve contemplar ruínas abandonadas, casas vazias que são os corpos mortos?

Escombros do cataclismo que é morrer.

Esses escombros que serão incinerados ou enterrados e quem sabe, esquecidos num canto da terra para a arqueologia um dia tentar nos perceber.

É o nada. Contemplamos uma caixa de madeira enquanto fitamos os bicos dos sapatos por engraxar tentando não olhar ninguém de frente e escancarar a nossa desadequação ao momento.

Quando não sabemos como chorar nem responder às ladainhas da missa. Ou quando não conhecemos as pessoas que chegam a nós cheios de sentimentos, ou quando engolimos as palavras cheias de segundas intenções das famílias desavindas. Nesses momentos olhamos para os pés e tentamos descobrir o que fazer com as mãos na esperança de encontrar algum tipo de dignidade na postura. Perdemos todos de maneiras diferentes.

E quando tudo isso passou, nem já a ruína existe, foi transformada em cinzas, tudo deixa de ser sobre quem cessou de ser e passa a ser sobre nós, a nossa perda.

Sobre o que teríamos feito diferente, onde lhes falhamos, o que não lhes demos por exaustão ou simples egoísmo ou todas as outras pequenas coisas que nos travessaram a vivência.

Ficamos a contemplar os nossos corpos, casas vivas, orgânicas, algumas ainda em construção, outras em declínio, mas vivas e imaginamos que um dia seremos nós ruínas depositadas numa caixa de madeira para outros contemplarem.

Questionamos quem somos, que vida estamos a viver, é a melhor que poderia ser?

Noutros momentos afundamo-nos no absurdo disso tudo… o que interessa se seremos ruínas um dia?

Depois disso faremos o esforço de perceber qual foi a última coisa que fizemos que foi realmente significativa por quem faleceu, o que lhe dissemos, quem foi para nós, quem fomos para eles e que falta nos fará.

E quem somos se as respostas são ambíguas, e há vazio no lugar de grandes histórias partilhadas, de mentoria. Que sobra se sabemos que não nos teríamos escolhido?  E ainda assim partilhamos uma vida.

Um dia serei ruínas, uma casa vazia pronta a incinerar. Não ficarei sequer para estudo da arqueologia.

Alguém fará disso um momento sobre a sua perda, ou não.

Morrer parece ser um caminho que se faz sozinho.






terça-feira, julho 11, 2023

Paradoxos...

Não sei como, mas a vida transformou-se numa exaustão perpétua, uma deriva em que temos de escolher quem queremos ser a todos os instantes, numa sucessão de paradoxos, que mudam a cada novo estudo e que se tornam verdades absolutas nos vídeos do Youtube, pelo menos, até se fazer refresh e encontrar uma  validação diferente.

Devemos acordar bem cedo, fazer ioga, escrever no diário, ler 10 páginas e ainda meditar, de preferência em jejum, mas o sono é de ouro e não podemos deixar de dormir 8 horas.

Dez minutos aqui, outros dez ali. Levanta-te de meia e meia hora. Exercícios de 7 minutos várias vezes ao dia são mais eficazes que estafantes jornadas e estar sentada demasiado tempo é pior que fumar para a saúde, já estar de pé faz doer as costas.

O cardio não emagrece e o melhor é levantar pesos, ou fazer HIIT ou as duas coisas, mas não deixar de correr porque faz bem ao coração. E claro, temos de encontrar tempo para descansar, que também faz parte do treino e o stress é corrosivo.

Cortar nos hidratos e afastar o glúten, eliminar lacticínios que incham a barriga, não comer produtos processados, à exceção de hambúrgueres vegetais que sangram e ninguém sabe bem como foram feitos, há que proteger o ambiente e manter o nível de proteína.

Comer de 3 em 3 horas, ou talvez seja melhor não comer de todo, fazer jejum. 16 horas, 36 ou 2 dias por semana, é escolher o protocolo e baixar a app.

Um copo de vinho às refeições, mas tinto que tem mais polifenóis. Uma cerveja por dia que faz bem aos ossos, li num estudo, mas talvez seja melhor deixar o álcool de todo que envelhece.

E para enganar os anos que marcam a pele há o gel de limpeza, o sérum, o contorno dos olhos, o creme de dia e o de noite, a máscara semanal, os exercícios faciais para afinar o queixo e diminuir as linhas na testa. Nunca esquecer o protetor solar, fator 50, mas apanhar sol suficiente porque nos faz falta a vitamina D se não queremos acabar deprimidos e com raquitismo.

Ler mais 10 páginas depois do jantar, está informada, dentro da cultura, mas não olhar para ecrãs duas horas antes de ir dormir que a luz azul interfere com a produção de melatonina. Mas há comprimidos para isso, só mais uma dose de vitaminas. Devemos suplementar sempre, ou só quando temos dores e tem dias que parece que comprar vitaminas é só deitar dinheiro fora.

Autoestima é necessário, se não gostarmos de nós quem gostará? Mas a linha é ténue, entre o amor próprio e o narcisismo. Apostar na saúde mental, no equilíbrio emocional, aprender a estar sós sem nos sentirmos solitários.  Mas nunca esquecer o importante que é ter um círculo social, sair, te divertires e viver aventuras.

A vida são dois dias, janta fora, vai de viagem e compra os sapatos, mas faz o PPR, tem um bom seguro de saúde e poupa para a entrada da casa. Sê, em toda a linha um consumidor responsável.

Não deixes pensamentos maus invadirem o jardim da tua mente, mas sê consciente do mundo à tua volta, da guerra, das alterações climáticas, da inflação galopante da pobreza encapotada. Compra o arroz e o leite para o peditório, mas te enroles na caridadezinha.

Entretanto, neste gasto de energia, os dias passam lentos e os anos rápido, é o paradoxo mais brutal da vida.


quarta-feira, novembro 24, 2021

Millennials...


Às vezes avalio a Vida e sinto-a como alguém que chegou tarde à festa. A festa foi linda, ainda a podemos sentir. Molhar os lábios no vinho fresco, pisar a pista de dança e sentir a brisa da noite. A festa foi linda, mas rapidamente se acenderam as luzes e ficaram para trás apenas os despojos. E nós, acordámos no outro dia entorpecidos por uma ressaca de pouca, mas má bebida.  Confusos porque perdemos algo que não chegámos a ter e a festa não se repetirá.
Como as promessas incumpridas, adiadas e depois esquecidas. A vida para a minha geração, é isso. Uma chegada tardia à festa e ainda temos o lixo por despejar.

Lembro-me de se adolescente e imaginar a vida adulta. Iríamos ser pessoas frugrais cujas compras de fim de dia se resumiriam a uma garrafa de vinho e a um queijo e que depois do after work voltaríamos para casa com fatos envoltos em plástico de lavandaria. Iríamos correr o tempo todo entre malas meio feitas, viajar. Ascender.
O depois seria sempre melhor que o agora.
A sorte protege os audazes e todas as merdas que disseram quem nasceu nos anos 80...

segunda-feira, agosto 02, 2021

Comporta, Carvalhal.

 


I

Percorro sempre a estrada num estado de hipnose, conduzido no presente e vivendo as tardes de verão a caminho da praia nos tempos em que era apenas uma adolescente. Lembro-me da luz dos dias, do cheiro do calor e dos pinheiros gigantes que ladeavam o caminho e esventravam a estrada antes mesmo de chegar à Muda. A Muda marcava o meio caminho entre casa e a praia e eu dizia sempre num tom jocoso que o meu sonho era morar na Muda. Aquela rua de lado único com casas baixas, um cenário de filme western. Tornava-se fácil imaginar que nada mais havia para lá da fachada do solitário café restaurante “A Taipa” com toldo branco encardido da Delta e a esplanada decadente invariavelmente vazia e com uma Sagres vazia esquecida numa mesa.

A Muda era o sítio onde os sonhos passavam sem parar, com medo de se perderem e nos dias de hoje essa caducidade foi maquilhada de exclusividade e luxo. A Muda continua a ser o meio do caminho, mas em seu redor há uma Adega e vinhas, há um resort de luxo e outros virão, o 7570-337 passou a ser um código postal desejado e eu não posso mais do que agitar-me na banco do carro enquanto me lamento por não me ter mudado para a Muda quando as casas se vendiam ao preço da uva mijona porque ali era um sítio onde ninguém queria parar.

Pareceu-me que todas as crises de meia idade passavam por ali também, saíram de casa cheirando a estofos novos e brilhando como uma pintura metalizada. Traziam os cabelos ao vento, queixo alto exibindo o orgulho do lugar que se ocupa na vida e uma pontazinha de desdém por tudo o resto. É impossível não notar a extravagância do parque automóvel, podemos percorrer os poucos quilómetros que nos separam da costa contanto os Teslas, o BMW, os Porches e os Mercedes desta vida, imaginando que não pagam o imposto aqui e sem conseguir descortinar pelo meio do mato denso onde raio ficam as suas garagens. Talvez camufladas entre pinheiros à beira do arrozal, exibindo fachadas ecológicas em locais de legalidade duvidosa. Imagino-os a sentirem-se enganados após gastarem 2 milhões numa casa de férias e serem comidos por mosquitos na primeira festa de abertura do verão no quintal.

Mas vai daí, a horda de mosquitos do arrozal não morde gente rica, ou quem sabe o dinheiro possa comprar algo melhor que repelentes e redes de pescador para os afastar.

Ao chegar ao Carvalhal senti-me como se o circo tivesse chegado à aldeia para uma temporada, montado a tenda ligado os altifalantes e espalhado cartazes pelos cruzamentos anunciando o número com os tigres e dos leões  com palhaços, impondo a sua presença de forma espalhafatosa.

Este circo instala-se, usa e abandona o local, deixando a rua única vazia para os seus habitantes. Os dos arrozais, os pescadores, os que vendem velharias, a malta da pinha e da cortiça e dos outros todos que não sabemos o que fazem nem do que vivem. Ao pessoal que anda de calções e chanatas o ano inteiro e envelhece precocemente com a pele curtida pelo sol, funde-se nesse novo estado, o do folclore de quem serve e dos que são servidos. Existem ainda ali, mas estão dissolvidos  nas cores berrante do novo circo que se instalou. A terra de rua única torna-se numa Riviera até o circo abalar altura em que o sítio volta a ser feito apenas de vácuos, um lugar onde os sonhos chegam para se desvanecer.

No fim dos anos 90 este circo era um pequeno teatro encenado para as famílias de bem que possuíam a Comporta, um local tragicamente enunciado como bom para “brincar aos pobrezinhos” em revistas do social muitos anos depois, quando as famílias de bem caíram em desgraça enroladas nos escândalos financeiros, os bancos, a crise de 2008 e deixaram de ser tão ostensivamente os donos disto tudo.

Passava-me tudo isto pela cabeça agora. Os anos permitem-nos criar um acervo de memórias, uma mistura de trívia recolhida nas revistas e nos jornais com os eventos da nossa vida e dessa amalgama de ideias cria-se esta visão da realidade, uma série de sensações e opiniões. “Não vemos o mundo como ele é, mas sim como somos”, pensei brevemente em Anis Nin.

Vendo o mundo assim, como serei eu agora e quem seria eu há duas décadas quando gastava o verão entre a aldeia e as areias da praia do Carvalhal.

 

II

Com os passar dos anos vamos deixando para trás versões de nós mesmos. Reconhecemos os nossos próprios traços em fotografias amarelecidas, somos certamente nós naquele momento e espaço, mas não o somos mais. Somos outras pessoas, diferenciadas com outros sonhos outras vidas. Mais ainda quando o fantasma que vagueia por ali é um uma versão de nós adolescente. Uma daquelas adolescentes problemática e inconsequente, dramática e frágil, um ser curioso e escorregadio com uma queda para a transgressão. O meu Doppelgänger imaginário viveu nestes areais verões críticos dessa adolescência, trabalhando no restaurante da praia e vivendo em sótãos de aldeia nos três meses de total liberdade que os pais lhe concediam para ir trabalhar. Naquilo que era suposto ser um tempo edificante, afinal o trabalho dignifica o Homem. Mas a minha adolescente não estava muito interessada na dignificação.

O feeling da rua é o mesmo, a principal que se percorre em marcha lenta caso contrário o carro salta alto nas lombas dissimuladas no alcatrão. Há anos foi construída uma variante à vila, mas nunca me consegui acostumar a usá-la. Gosto de seguir em frente depois da rotunda que foi inventada para essa variante logo a seguir ao muro do campo da bola que se apresenta à nossa esquerda. Eternamente esgatanhado por grafitis medonhos e clubísticos, ladeado por pinheiros mansos que fazem sombra a um pequeno parque de merendas. Logo após a rotunda, à esquerda uma bomba de gasolina inativa, uma cápsula do tempo ao lado do qual jaz um bar há muito fechado.  Segue-se o largo das festas, um quadrado de pó que se engala em agosto para as festas de São Romão e alberga os mercados raquíticos que ali passam mensalmente. Depois está cristalizado o antigo restaurante O Avelino, até há pouco tempo aberto e agora de persianas perpetuamente fechadas. Á direita a Junta de Freguesia, o jardim escola e o edifício da Caixa de Crédito Agrícola para nos lembrar que existe ali uma extensão da civilização.

Abre-se aí a rua ocupada lado a lado. Café e esplanadas com histórias antigas privam agora com lojas Pop Up de decoração, restaurantes com comida vegan e imobiliárias hight end. Nas manhas de verão, o trânsito pacato transforma-se numa hora de ponta, de carros parados em segunda via, de camionetes de fruta ou pão a vender no estacionamento e do povo que as rodeia, pessoas com roupa veraneante só de passagem ou a borboletar pelos escaparates dos jornais na única papelaria da vila. Percorre-se a rua como que superando a prova dos obstáculos para chegar ao fim e mesmo antes de se voltar para as praias encontrar um pátio da antiga escola transformado em estacionamento para duas food trucks, com hambúrgueres gourmet e sushi, um último piscar de olhos a um life style estrangeiro ao sítio.

Aí à esquerda ergueu-se entrando pelo arrozal adentro, a novíssima Quinta da Comporta. O suprassumo do luxo, construído no entorno da vila, mas tão longe de tudo e todos, quase como se fosse uma outra galáxia, uma que o comum mortal não pode pagar.

Á apropriação da arquitetura local juntou-se uns pós de arquitetura moderna, à cal das paredes cores e texturas hippie chic e boho e por meio chamaram-se artistas atuais para deixarem a sua marca no meio do nada, nas paredes e do chão que pavimenta os caminhos entre quartos que ficam para lá dos muros que separam as galáxias.

Na rua, resquícios de barracas de pescadores, umas reconstruídas na sua traça tradicional, outras ainda que habitadas, votadas ao pitoresco das redes e dos objetos perdidos pela entrada, como se as pessoas não tivessem noção do real valor do seu quadrado de chão.

Nada daquilo estava ali. Não quando eu era criança e íamos passar os dias à praia de geleira cheia e bola na mão. Quando ir à praia era uma aventura programada, porque o combustível era pago em notas de 500 escudos e poupado desengatando o carro nas descidas. Nem estava ainda quando na minha adolescência ali passava os verões, fazendo o caminho entre a vila e a praia de bicicleta com o avental do serviço dentro da mala.

A berma da estrada era incerta e agora é ladeada por um resort e uma ciclovia. O arrozal continua à direita verde, húmido perene no vale, casa de cegonhas impertinentes que não se assustam com o movimento.

Ao longo dos anos, voltei muitas vezes ali, pude ver a mutação. Mas nunca, como agora, havia sentido esta nostalgia. Ainda não tinha voltado para ficar, como quem volta ao lugar de partida para refazer as coisas, numa troca de vida que ainda nem começou e já me começa gorada. O local de partida não é mais o mesmo. Já não sei porque voltei, se para recomeçar ou se para acabar de vez com o ciclo.

 

III

Na verdade, a oportunidade de voltar ao Carvalhal surgiu do nada, mas pareceu um sinal qualquer do destino e uma forma fácil de escapismo. Como se voltar para ali fosse uma espécie de truque de magia e eu acordasse ao som das ondas, com menos 20 anos e pudesse rescrever as coisas.

Ainda não sabia bem onde as coisas tinham saído do controle, onde eu tinha perdido o sentido de mim mesma e me vi à beira da insignificância. O tédio da existência infetou-me cedo na vida, e os dias passaram a suceder-se uns aos outros sem grande interesse nem objetivo.

Às vezes penso que a minha geração sofre de síndrome da Grande Festa. Cedo na vida estivemos numa festa épica, onde a música estava tão alta que o sangue nos corria nas veias ao seu ritmo. As luzes e as sombras, os rostos em êxtase, as drogas da moda, o clubbing, as discotecas no auge e as festas de transe no mato. A perspetiva de que a vida a seguiria sempre a melhorar.

Os primeiros da família a tirar um curso superior, os primeiros a entrar num avião e a viajar, a falar línguas. A carta aos 18 com o carro já parado na garagem, as expetativas.

As nossas e as dos outros. E depois veio o Boom do Ano 2000, o atentado do World Trade Center e os que lhe sucederam. Veio a crise do Suprime, o FMI e quando finalmente a ressaca estava a melhorar a Pandemia do Covid19.

Ainda temos a boca seca e a dor de cabeça sensível ao som, a ressaca tem já duas décadas e parece que nada mais nos pode fazer sentir a euforia desses anos. Dos anos em que a luta política eram as propinas e o nosso voto só poderia ser de protesto. O combate social era a liberalização dos costumes, o aborto e a despenalização das drogas.

Os adolescentes dos anos 90 achavam que esses eram os problemas do mundo. A crise climática ainda era o aquecimento global e aprendíamos a reciclar com o macaco Gervásio nos intervalos da novela.

Quem queria saber? Fumava-se nos intervalos das aulas nos pátios da escola e podíamos faltar a um certo de número de aulas sem que os pais fossem avisados. Havia uma displicência nisso tudo, fumar passou a matar muito mais depois dos anos 2000 e atualmente há policias à porta das escolas.

Para nós, a geração rasca, o mundo era um parque de diversões, pouco mais tínhamos com que nos preocupar se não em não cheirar a tabaco ao chegar a casa e ter a certeza de que ninguém nos via entrar em bares onde ninguém nos perguntava a idade quando pedíamos cerveja.

A Grande festa e despois a enorme ressaca que lhe sucedeu.

 

IV

Parei o carro fora do parque pago e caminhei até colocar os pés no passadiço de madeira e depois entrar no vasto areal e encontrar o mar. A água do Atlântico continuava gelada e Serra da Arrábida ainda mais presente na paisagem após os níveis de poluição do ar terem baixado nos meses seguintes à pandemia. Se houve alguma coisa boa que saiu desse período miserável das nossas vidas foi esse e o teletrabalho. Praised be!

Os chapéus de palha da área concessionada são em menor número e estavam mais espaçados do que quando eu era miúda e nas praias havia-se inventado uma pequena barraca pé na areia onde adolescentes se atarefavam a servir sangrias de espumante e caipirinhas pelas espreguiçadeiras.

A tarde estava calma embora ventosa, pensei se fazia assim tanto vento antigamente, se os dias teriam esta luz ou se as pessoas pareciam tão alienadas. Os restaurantes sob as dunas deixaram de ser de tijolo e foram substituídos por versões de madeira que respeitam o ecossistema das dunas e os nadadores salvadores tinham agora um posto avançado de vigília que substituiu a velha casota onde guardavam as boias. Mas no seu conjunto é a mesma praia.  A mesma convivência da parafernália do verão com as artes da pesca, o velho trator de puxar barcos pela areal parado lado a lado com jipes novos em folha com tração às quatro rodas que levam gente a praias pouco acessíveis.

A mesma horda  de mulheres vestidas de linho branco e bronzeados de óleo de cenoura, os mesmo bandos de miúdos pré adolescentes chupando gelados e jogando bola na área das redes e para lá da área concessionada, o mesmo mar de chapéus em corres berrantes cheios de geleiras, toalhas e pessoas em bando retidas entre a vontade de dormir a sesta e a necessidade imperiosa de impedir os miúdos de se lançar ao mar.

Tudo aquilo desaparecia em poucas horas, as pessoas arrumariam a tralha e saíram em debandada antes do sol se por. Sobraria para a hora dourada apenas os casais apaixonados ou o surfista ocasional. O silêncio da noite seria ensurdecedor, cortado pela cadencia das ondas, o zumbir dos mosquitos e um ou outro riso abafado dos que tardariam a sair das esplanadas dos restaurantes depois de um jantar mais bebido e sem lugar para onde ir.

Não há bares. Não há pista de dança, não há rua das lojas pedonal nem multidões. Este ano não houve sequer os arraiais de fim de semana. O caminho que separa a orla da praia e os alojamentos raramente se pode fazer a pé e apesar de a aldeia estar a escassos 3kms, a maior parte das pessoas não se faz ao caminho.

A noite começa nos restaurantes e poderá acabar numa qualquer sala privada ou ser deambulada no pinhal sem destino.

O tédio existencial a apanhar-nos ali, nesse momento, bem me lembro. O Carvalhal não é uma estância balnear em ebulição, não é uma praia da Oura.  A Costa do Alentejana é bem mais subtil.

Despi-me e mergulhei, um mergulho profundo só terminado quando já me faltava o ar e o mecanismo de sobrevivência me trouxe de volta ao de cima para recuperar o folego e o nervo. À minha frente o oceano aberto, nas minhas costas o restaurante de praia, embora vivesse agora entre paredes de madeira estava já em declino, como se o tempo não lhe tivesse sido favorável. Meia dúzia de mesas ocupadas servidas por jovens ineptos, tabuas a precisar de tinta, estação de radio errada, uma cápsula do tempo bem fechada, embalagem nova, produto antigo.

Eu estava ali para mudar varrer essa nostalgia para fora e dar alma à casa.

V

Não sei se a missão me encontrou ou se eu a procurei. Pareceu tudo uma casualidade, uma troca de cartões numa feira de Madrid uns meses antes do confinamento varrer as nossas vidas como um tsunami. Esteban Garcia, empresário proeminente da noite de Ibiza estava à procura de praias mais calmas para abrir um beach club exclusivo, de luxo, uma pequena Ibiza num local pouco explorado. E embora não seja a minha área, o meu conhecimento do local interessou-o. O encontro foi igualmente casual por meio de conhecidos e a troca de cartões uma formalidade da qual me esqueci até que algumas semanas depois me telefonou para falar mais sobre o tema.

As praias, o publico que visita a zona, como funcionam as conceções. Que percebo eu disso pensei, caro Esteban eu percebo apenas de copos, de noite e de bares. No entanto, uma coisa cruzou-se com outra, fomos conversando até ao dia em que se materializou.

Esteban havia encontrado um espaço, comprou-o e achava que eu era a pessoa indicada para ir para o terreno o orientar. O espaço era o meu antigo Estrela do Mar.

Por essa altura os dias bafientos fechada no apartamento na cidade já não se contavam em dias, mas sim em semanas.  Nunca o espaço tinha parecido pequeno até então, quem precisa de quintais e quartos extra vivendo no meio de Lisboa?

A vida corre rápida na rua, nos bares, nas galerias ou nos jardins. As compras são feitas à medida na loja da esquina e os jantares maioritariamente fora. A roupa seca-se na lavandaria, a bicicleta aluga-se na app, o carro é um Uber. A vida é feita em outsoursing, não há o que acumular, nem os trapos das milhentas coleções que saem por estação e depois da rodagem se despeja num qualquer contentor solidário.

Mas o confinamento deu-me essa sensação de claustrofobia, o senso de não caber mais no espaço que habito, de não caber no corpo que é meu.

E como se não bastasse, o meu trabalho foi escasseando até desaparecer deixando-me á merce dos dias. O tédio, o medo e a claustrofobia estavam em ebulição quando o Esteban Garcia chegou com a proposta que à superfície parecia boa e era. Financeiramente falando, profissionalmente desafiante, mas numa outra camada trazia-me de volta para uma vida que eu havia já esquecido. Para as personagens e as situações mal resolvidas, para outro tipo de claustrofobia, uma a céu aberto com cheiro de maresia e quintal de areia.

Ainda assim pareceu-me uma troca razoável enquanto falávamos e eu fixava as tabuas gastas do chão da sala. Qualquer coisa que implicasse sair do meio das ruas vazias e sombrias de betão, ainda mais que o resto do país abria já e nós continuávamos em estado de calamidade. Nós os citadinos de noites longas em obrigação civil de recolhimento, de distanciamento e de lanches antes das 20h00 em vez de ceias tardias pela meia noite.

Pareceu boa ideia um trabalho diferente, outro ritmo. Pareceu boa ideia um projeto com objetivos concretos em vez das variantes do trabalho criativo das letras, parecia boa ideia o distanciamento das tensões das relações que viviam já em desgaste. O tédio dos dias. Não havia realizado até ali o quão vazio tudo era, acho que é o que nos acontece quando finalmente há tempo para pensar, para nos pensarmos. Viver na capital não nos deixa tempo ou simplesmente é mais fácil de fugir da tarefa.

Não há que alimentar depressões quando podemos bem ir ao cinema à segunda, beber um copo afterwork à terça, passar por aquela exposição à quarta, deitar tarde à quinta porque é o melhor dia para concertos em circuitos underground e depois é sexta e sábado e no domingo há brunch tardio envolto numa névoa por entre a qual tentamos montar o mosaico da semana com as amigas entre mimosas e as tostas de abacate.

Há sempre o que fazer, onde ir e com quem estar. As relações são intensas enquanto duram e o final chora-se numa pista de dança enquanto se avalia a possibilidade de encontrar ali nova história, outro rastilho de queima rápida. Acendalhas que nos deixam em chama e que esfriam deixando nada mais para trás do que carvão apagado.

Tudo isso se tornou numa evidencia aberrante durante a pandemia. Tive tanto tempo para pensar-me, ali estava eu nos 30 e muitos. Num estúdio, sem trabalho, sem semelhante e sem sentido, remoendo cicatrizes.

A oferta de Esteban Garcia pareceu a única coisa possível de fazer.

 

VI

 

Sempre me interessou a dinâmica do fim de tarde na praia naquele cosmos de área concessionada. Os salva-vidas vestidos de igual brilhando na juventude da sua pele bronzeada com as jovens adolescentes gravitando por ali, atraídas como as melgas são para a luz. Reparei que agora um deles é mulher, antigamente as miúdas não se candidatavam a tal trabalho, mas isso abre todo um leque de novas interações e a dinâmica é diferente. Agora adolescentes de todas os géneros gravitam á volta dos uniformes.

Os novos apoios de praia de pé na área e serviço aos chapéus trouxe toda uma nova forma de luxo. As sangrias de frutos vermelhos e espumante podem rolar em jarros de plástico pelos chapéus de palha enquanto os seus ocupantes de esponjam pelas espreguiçadeiras mandando o moço por o serviço na conta do número do chapéu.

Ali, no aparente lazer preguiçoso de agosto faz-se, no entanto, um intenso networking entre gente com nomes compridos, os advogados e os CEO´s, as mulheres e os filhos crescendo todos em conjunto para se perpetuarem nos seus papeis.

Mas a dinâmica que mais me fascinou foi sem dúvida os bandos de adolescentes, o futuro da nação. Os gaiatos acabados de entrar no Técnico discutindo entre o jogo de volley, as miúdas invariavelmente perfeitas em biquínis lascivos de marcas sonantes. Os louros palha, os nomes que se recolhessem da capa de jornal, quando os ouvimos chamar entre uma bola perdida.

O exercício de sentar e ouvir. Ouvir sobre a jarda de ontem à noite ou sobre o carro que eu tenho, o ano escolar a seguir, a casa onde se está a ficar. Depois o exercício de empatia, pobres ricos, alienados.

Quando era miúda atraia-me tudo aquilo, qual a adolescente remediada parada à porta de entrada não sonhou que a convidassem a entrar? Quem sabe aquela paixão de verão não se tornasse num amor de Hollywood, quem nunca sonhou encontrar um infante rebelde, rico e domá-lo como a um poltro? Quebrar convenções, menina pobre menino rico, lutar contra tudo.

Enfim, também me havia acontecido, a gata borralheira que ficava a varrer o restaurante depois de fechar e os meninos que esperavam que saíssemos para irmos aqui e ali fechando o círculo à nossa volta, tornando-nos especiais pelo menos até que cedêssemos a algo.

Para eles, caçar a menina pobre também tinha o seu quê de interesse. Lembro de um caso com um tal de Martim. Era um doce de rapaz, só ninguém parecia saber, no entanto o meu eu de dezasseis anos foi dura, demos uns quantos beijos por entre uns passeios de jipe no pinhal, fumamos umas quantas ganzas nos fins de tarde e no fim do agosto fomos às nossas vidas sem nada consumado.

Sem redes sociais, sem emails e na precariedade dos números de telemóvel diluíramo-nos na história um do outro.

Eu continuei a varrer o restaurante ele provavelmente manda em algo mais.

Mas estão ali espelhados os estereótipos, os herdeiros, as linhas genealógicas do passado e do futuro e está ali o porque da total falta de empatia pelos que lhes estão abaixo. A arrogância no tratamento e o sentimento de que tudo lhes é devido.

Quem nasce num meio como aquele, cresce entre iguais não pode nunca desenvolver empatia pelos problemas do mundo.

Por esta altura sorri por dentro agarrei na roupa e sai em direção à esplanada em busca de um copo de vinho branco fresco, credo é tão fácil divagar por tudo aquilo. É um quadro imutável.

Dantes não o compreendia, depois numa fase revoltava-me, agora é simplesmente indiferente.

É um absurdo, como diria Camus, a mim batia-me agora na consciência como batem as ondas ao chegar à praia.

.....

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Na hora...

Lembro-me do caminho de terra até ao monte, as ervas pelo carreiro do meio e os campos lavrados. As casas sempre modestas e inacabadas e os rostos das pessoas que já tinham longas vidas.

Lembro do curral, das ovelhas e das vacas. Do leite quente acabado de ordenhar, peganhento e coalhado, gorduroso, impossível para quem cresceu a beber o leite do Treta Pak.

As galinhas que andavam por ali desgarradas, os gatos ramelosos, o milho, as batatas doces, as couves e as melâncias no verão.

O rosto das pessoas cristalizado em memórias, como daguerreótipos, imagens pouco definidas e longínquas.

O cheiro do verão.

Memórias, o lugar das pessoas na nossa vida, na hora da sua morte.
Qual será o nosso lugar nessa hora?

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Os dias...

Os dias estão maiores já se nota. As luzes espalhadas pelo caminho acendem-se ainda de dia como se estivessem mal sincronizadas. Saio e ainda se vê o caminho de terra batida, levo os olhos a esse chão, essa obra inacabada. Ora seco, ora encharcado, transformado num lamaçal. Cada buraco que não o era no dia anterior, a terra pisada, as pegadas.

Minhas ainda? Haverá mais ténis Nike 38,5 por aqui? E os rodados dos carros, dos tratores, as pegadas de animais indefinidos, que fazem todos eles por aqui? Há casas fechadas, terrenos agrícolas, sobreiros sós. As cegonhas, o burro e a horda de cães que se agita em quintais aleatórios ao som do meu passo.

Cheira a madeira no momento da queima, notas fortes como a espinha dorsal de um perfume. Cedro, pinho, terra e silêncio, tudo embrulhado na maldita humidade de um inverno que não se decide a ser frio e chuvoso e de tempestade, escolheu ser limbo.


Sempre pintaram o inferno como um sítio em chamas, não creio. O fim dos tempos será cinzento e húmido. Sem tréguas ou um raio de sol, só nós de roupa encharcada colada ao corpo, ténis sujos de lama a tremelicar de frio. 


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Trivialidades...

O mundo deve estar louco, acendi a luz e ando a matar melgas em fevereiro. O que me dá nos nervos os zumbidos a cortar o silêncio da madrugada, as melgas e o cão que depois de velho entrou no cio.

Nos cantos das paredes junto ao tecto cresce a olhos vistos uma mancha de humidade, uma mancha inofensiva, mas ofensiva para o meu sentido do mundo. O cinzento das paredes que nunca mais será exatamente aquele que eu escolhi, a mancha penetrando nos meus quadros. 


Nada mais parece estar no lugar. Não chove, apenas vivemos envoltos neste mar de dias cinzentos, peganhentos de saturação de água no ar. 


As laranjas caiem espontâneas para o chão, a roupa não enxuga e entretanto estamos em fevereiro, a pensar trivialidades. Onze meses de trivialidades. Já vi formigas no quintal, como se lida com formigas no inverno? Como se fosse normal?


E o raio da televisão que continua a vomitar tragédia, e nós cansados já não vemos números. Pensamos no que vamos almoçar amanhã, sim, fazer almoço é algo que tem de ser pensado. As compras feitas antes. Por agora já nos devíamos ter habituado a fazer um menu, acabar de vez com essa coisa da espontaneidade.


Estava a remexer nas bainhas da blusa, a puxar fios com as unhas mal limadas que os tempos não me deixam ir arranjar e estava a pensar que já passamos da vida adiada. Adiada parece que vamos partir de onde parámos e continuarmos a ser quem éramos antes dos traumas e dos cabelos brancos do último ano. Não, isto parece-se mais com um assalto, uma vida roubada. E nós de luto, sem saber ainda como a chorar.


quarta-feira, setembro 11, 2019

Um dia de Setembro




Em Portugal, uma criança que tenha nascido NO dia do 9/11 poderá votar nas eleições legislativas de Outubro.
Nesse dia eu tinha 17 anos e procrastinava enfastiada no sofá  à espera do início do ano lectivo. Vimos aquilo na TV em directo e marcou-nos a ferros quentes, a angústia nunca mais nos largou.
Agarrou-nos antes da angústia de ser adulto, antes do aquecimento global passar a ser a crise climática e a angustia do tédio existencial se transformar no vazio de não sabermos o que será o mundo com mais 2ºC.
Os anos que se seguiram e que se continuam a suceder levam-nos para longe do conforto, da segurança da prosperidade.
Ficámos para sempre em alerta. Quebrou-se a confiança no futuro.
São apenas 18 anos. Neles a guerra do Iraque, a Internet, as redes sociais, a crise dos media, o tsunami do Índico, a crise do subprime, mais ataques terroristas. A fome na Venezuela, o êxodo de África afogado no Mediterrâneo, os fogos fatais em Portugal, os glaciares a descongelar e o mar a subir, o Ébola, as árvores na Amazónia a tombar de todas as formas e duas décadas adentro do século XXI, continuamos angustiados.
Perdemos a inocência num dia de Setembro.


terça-feira, agosto 06, 2019

FMM Sines ou a procura dos Mundos


Ir ao FMMSines não é bem ir a uma festival, é ir ao encontro das nossas ansiedades primárias.
É ir a um local questionar o que somos, que vida estamos a viver. É confrontarmo-nos com tantas outras opções. Notar o quanto nos aburguesamos desde os tempos em que queríamos engolir o mundo de uma vez, dança-lo todo numa noite, ser sempre o melhor que achávamos que poderíamos ser,  ainda que sem qualquer mérito ou consideração.

Quando nos sentamos no passeio a gabar caravanas ou a ouvir o babilónico som ambiente, questionamos. Quem são estas pessoas? De onde vêm, que se passou entretanto? Que fixação é esta com cães rafeiros que se assemelham na higiene aos seus próprios donos?

Quem são? Quando decidiram sair da abundância e do conforto para esta vida despida?

E eu? Quando é que decidi ter uma vida convencional, corresponder?

***

O chão do castelo está sempre revestido de ervas frescas, alfazema e hortelã pimenta entrelaçadas no pasto que ao cair da noite, com a chegada da maresia, libertam um odor agradável, campestre que nos faz sentir um pouco mais ligados à terra, como se os nossos pés se prolongassem em raízes profundas e fossemos imovelmente dali.

As muralhas marcam a linha do horizonte e depois disso só um imenso céu, negro e estrelado. Um manto que nos cobre e por baixo dele o palco, as luzes, o barulho das pessoas que balançam nas suas raízes. Pessoas excêntricas, normais, os sós e os seres sociais. Os que visivelmente tiraram a roupa estilizada e se mascararam de Sines e os que no seu melhor fato não sabem onde vieram parar. O castelo pulsa com todos, ainda antes do primeiro acorde, enquanto só as diferentes línguas são música, a cerveja vagueia pelos copos e os fumos brincam de mão em mão. 

Imagino que no inicio, assim que houve consciência o Homem juntou dois sons e criou o ritmo. Rudimentar mas apaziguador, repetitivo e natural como o próprio bater do seu coração.
E depois o sangue a pulsar nas veias, a ansiedade, o medo, a paz e todas as outras nuances da alma humana se começaram a reflectir nesse ritmo e isso é a música.

Em Sines, o primordial encontra-se com o erudito. E isso é musica universal, uma linguagem genética que nos coloca a todos com o sangue a pulsar ao mesmo ritmo. Em paz e em êxtase ao mesmo tempo. Cansados e ainda assim transbordantes de energia, bebados de tudo e experienciando a mais clara das sobriedade. 
A musica a ser comunhão.

Não se vai lá ouvir as modas, nem ser contracultura. Vai-se lá assumir a beleza da diferença. A qualidade do que é bem feito, não importa onde vem nem o quão diferente pode ser de nós, da nossa percepção ou dos parâmetros que nos regem.
Vai-se ao Castelo de Sines viajar. Encontrar Mundos, dentro e fora de nós.
Por isso que voltamos todos os anos. 
Ainda não descobrimos tudo.





quarta-feira, julho 03, 2019

Morreu o Avô.

Morreu o Avô.
O Avô não vive nas nossas memórias da infância. Nunca contou um história, nunca nos ensinou nada para a vida. O Avô não é referência, nem modelo, mas o avô existia.
O Avô vivia à vontade dele, há anos no silêncio dos dias e da sua limitação. 
Diz-se na venda que não havia outro para cavar a terra como ele, o Tigre do Isaías. Chegava ao balcão com duas laranjas no bolso e bebia um litro de tinto. 
Ouço que noutros tempos os carros recorrentes nos caminhos para o Algarve abrandavam o passo a seguir às bombas da Móbil, não fosse ele andar por ali a ziguezaguear encostado à pasteleira ferrugenta.
A bomba já não se chama Móbil, a estrada tem semáforos, há autoestrada....O Tigre já não passa.
O Avô usava um desses chapéus de feltro negro à maltês e tinha os dedos curtos e grossos, como pequenos troncos nodulosos de árvore, retorcidos e exaustos saindo de mãos que nunca faziam festas.
Nos últimos anos sentava-se à esquina da casa a abismar, e fazia-me "espécie". Em que pensaria ele naquela forma de sono acordado... meditava? Revivia memórias? Pensaria tudo aquilo que não podia dizer? Desmontava o mundo?
Quando era criança o Avô trazia melancias no verão, daquelas grandes e riscadas que comíamos sentadas em bancos no quintal com o sumo a escorrer pelos cotovelos para o alguidar no chão. A seguir migávamos as cascas para as galinhas e tomávamos banho com água fria chupada do poço pela motor da rega que hoje teima em não funcionar.
No fim do outono trazia batatas doces que se assavam no lume de chão na casinha mascarrada entre os potes de barro de aquecer água e a lenha incandescente. 
O Avô dizia que tinha bom ouvido, tão bom que ouvia as sementes a germinar debaixo do chão, mas ligava o rádio  bem alto às primeiras horas da madrugada.
Este inverno ensinou-me a cortar lenha num cavalete e danou-se sempre que lhe roubei o trabalho, mesmo que lhe faltasse o equilíbrio e a mim não me faltassem braços.
Dizia que tinha mais dinheiro que terra, mas que importa, não levou nada.
Não levamos nada, nem as memórias. 
Deixamos tudo. 
O banco vazio na esquina da casa, o silêncio nas madrugadas, as laranjeiras por regar e a certeza que não dissemos, não fizemos, não vivemos tudo o que havia para tentar.
O Avô morreu. 
Não passou a ser melhor, nem pior, não é uma referência, não nos ensinou nada para a vida.
Existe com uma caricatura do passado, um lembrança das nossa raízes humildes, do muito que crescemos desde os tempos da terra revolta à enxada. Quando as pessoas só tinha dois nomes próprios, os nossos Avós vão para a terra com lápides resumidas.
Aqui jaz Marino José.
Viveu sempre à sua vontade.






segunda-feira, julho 01, 2019

...

Ontem, sentada num banco de espera de estação do Oriente, bebendo o meu sumo de laranja natural acabado de espremer para uma garrafa de plástico de uso único, observado o rebanho de pessoas indo e vindo. Muitas,  mastigando, bebendo, consumindo, carregando malas, correndo ao desvario ou apenas existindo ali ao ritmo a que os comboios trepidavam nos carris... Ocorreu-me que somos mesmo capazes de estar condenados. A engrenagem não tem travão.
Todo e qualquer esforço noutro sentido é como rolar a pedra de Sísifo.


quarta-feira, junho 05, 2019

Corpo


O corpo, um corpo de mulher.
Líquido. As lágrimas, o suor,
a urina e o sangue, a pele.
O cheiro, a libido, a dor, o prazer
Tocar-se, sofrer, desejar
Corpo que a mente não acompanha
Mente que se expande, a sabedoria
Corpo que encolhe, que mirra.
O medo, a falha, a ansiedade
A marca nova no rosto, a cor mortiça
O cabelo que caí, a estria no peito
O corpo, líquido. A dismorfia.
A fome, a gula, o jejum. A raiva.
A insatisfação, o sono, a insónia
O desconforto, a volúpia, a imaginação
A cólica, o dorido, a impossibilidade, a doença,
a desintegração, a finitude.
Um corpo. O corpo.
De mulher, líquido.
Constante mutação.

quarta-feira, julho 25, 2018

Folhas perdidas - I

Há uns anos as folhas de papel em branco passaram a ser assustadoras. O mundo passou a ser escrito em ecrãs, partilhado freneticamente e à mesma rapidez com que se lembra, tudo se esquece.

Até de nós mesmo nos esquecemos na cadência repentina dos dias, as tarefas, as obrigações, os fretes e pelo meio tudo aquilo que fazemos para nos esquecermos do miserável que é não termos qualquer controle sobre os nossos dias.

Há dias que acordo e só queria uma pequena cabana com porta que abrisse diretamente para o mar. Queria poder andar descalça e semi despida e não ouvir nada, nem ninguém. Poder ficar a sentir a rotação da terra debaixo dos pés nus, a maré em ondas mornas, os sussurros do mundo trazidos pelo vento.

Depois há os outros dias, dias em que nada me chega. Não há simplicidade nem isolamento no brilho do mundo quando somos dragados para o seu interior, para as arenas da urbanidade onde debaixo dos nossos pés calçados nada se sente, porque vivemos a levitar. As luzes, as cores e toda essa torrente de informação que nos atropela e nunca, mas nunca nos deixa tempo para a destilar, o tempo passa nessa espécie de alucinação que não nos deixar pensar só nos permite continuar sem nunca por os pés no chão, somos levados em ombros, nem sabemos para onde estamos a ir.



O sono...


Não sei descansar
não aceito o tempo perdido
esta sede... a alma em ebulição

O meu corpo não tem palavra, só grito
Nunca sofro de cansaço...
só desfaleço de exaustão.