I
Percorro sempre a estrada
num estado de hipnose, conduzido no presente e vivendo as tardes de verão a
caminho da praia nos tempos em que era apenas uma adolescente. Lembro-me da luz
dos dias, do cheiro do calor e dos pinheiros gigantes que ladeavam o caminho e esventravam
a estrada antes mesmo de chegar à Muda. A Muda marcava o meio caminho entre
casa e a praia e eu dizia sempre num tom jocoso que o meu sonho era morar na Muda.
Aquela rua de lado único com casas baixas, um cenário de filme western.
Tornava-se fácil imaginar que nada mais havia para lá da fachada do solitário café
restaurante “A Taipa” com toldo branco encardido da Delta e a esplanada
decadente invariavelmente vazia e com uma Sagres vazia esquecida numa mesa.
A Muda era o sítio onde
os sonhos passavam sem parar, com medo de se perderem e nos dias de hoje essa
caducidade foi maquilhada de exclusividade e luxo. A Muda continua a ser o meio
do caminho, mas em seu redor há uma Adega e vinhas, há um resort de luxo e
outros virão, o 7570-337 passou a ser um código postal desejado e eu não
posso mais do que agitar-me na banco do carro enquanto me lamento por não me
ter mudado para a Muda quando as casas se vendiam ao preço da uva mijona porque
ali era um sítio onde ninguém queria parar.
Pareceu-me que todas as
crises de meia idade passavam por ali também, saíram de casa cheirando a
estofos novos e brilhando como uma pintura metalizada. Traziam os cabelos ao
vento, queixo alto exibindo o orgulho do lugar que se ocupa na vida e uma
pontazinha de desdém por tudo o resto. É impossível não notar a extravagância do
parque automóvel, podemos percorrer os poucos quilómetros que nos separam da costa
contanto os Teslas, o BMW, os Porches e os Mercedes desta vida, imaginando que
não pagam o imposto aqui e sem conseguir descortinar pelo meio do mato denso
onde raio ficam as suas garagens. Talvez camufladas entre pinheiros à beira do
arrozal, exibindo fachadas ecológicas em locais de legalidade duvidosa.
Imagino-os a sentirem-se enganados após gastarem 2 milhões numa casa de férias
e serem comidos por mosquitos na primeira festa de abertura do verão no quintal.
Mas vai daí, a horda de
mosquitos do arrozal não morde gente rica, ou quem sabe o dinheiro possa
comprar algo melhor que repelentes e redes de pescador para os afastar.
Ao chegar ao Carvalhal
senti-me como se o circo tivesse chegado à aldeia para uma temporada, montado a
tenda ligado os altifalantes e espalhado cartazes pelos cruzamentos anunciando
o número com os tigres e dos leões com palhaços, impondo a sua presença de
forma espalhafatosa.
Este circo instala-se, usa
e abandona o local, deixando a rua única vazia para os seus habitantes.
Os dos arrozais, os pescadores, os que vendem velharias, a malta da pinha e da
cortiça e dos outros todos que não sabemos o que fazem nem do que vivem. Ao pessoal que anda de calções e chanatas o ano inteiro e envelhece precocemente
com a pele curtida pelo sol, funde-se nesse novo estado, o do folclore de quem
serve e dos que são servidos. Existem ainda ali, mas estão dissolvidos nas cores berrante do novo circo que se instalou. A terra de rua única torna-se numa
Riviera até o circo abalar altura em que o sítio volta a ser feito apenas de vácuos,
um lugar onde os sonhos chegam para se desvanecer.
No fim dos anos 90 este
circo era um pequeno teatro encenado para as famílias de bem que possuíam a
Comporta, um local tragicamente enunciado como bom para “brincar aos
pobrezinhos” em revistas do social muitos anos depois, quando as famílias de
bem caíram em desgraça enroladas nos escândalos financeiros, os bancos, a crise
de 2008 e deixaram de ser tão ostensivamente os donos disto tudo.
Passava-me tudo isto pela
cabeça agora. Os anos permitem-nos criar um acervo de memórias, uma mistura de trívia
recolhida nas revistas e nos jornais com os eventos da nossa vida e dessa
amalgama de ideias cria-se esta visão da realidade, uma série de sensações e
opiniões. “Não vemos o mundo como ele é, mas sim como somos”, pensei brevemente
em Anis Nin.
Vendo o mundo assim, como
serei eu agora e quem seria eu há duas décadas quando gastava o verão entre a
aldeia e as areias da praia do Carvalhal.
II
Com os passar dos anos
vamos deixando para trás versões de nós mesmos. Reconhecemos os nossos próprios
traços em fotografias amarelecidas, somos certamente nós naquele momento e
espaço, mas não o somos mais. Somos outras pessoas, diferenciadas com outros
sonhos outras vidas. Mais ainda quando o fantasma que vagueia por ali é um uma
versão de nós adolescente. Uma daquelas adolescentes problemática e
inconsequente, dramática e frágil, um ser curioso e escorregadio com uma queda
para a transgressão. O meu Doppelgänger imaginário viveu nestes areais verões
críticos dessa adolescência, trabalhando no restaurante da praia e vivendo em
sótãos de aldeia nos três meses de total liberdade que os pais lhe concediam
para ir trabalhar. Naquilo que era suposto ser um tempo edificante, afinal o
trabalho dignifica o Homem. Mas a minha adolescente não estava muito
interessada na dignificação.
O feeling da rua é
o mesmo, a principal que se percorre em marcha lenta caso contrário o carro
salta alto nas lombas dissimuladas no alcatrão. Há anos foi construída uma
variante à vila, mas nunca me consegui acostumar a usá-la. Gosto de seguir em
frente depois da rotunda que foi inventada para essa variante logo a seguir ao
muro do campo da bola que se apresenta à nossa esquerda. Eternamente esgatanhado
por grafitis medonhos e clubísticos, ladeado por pinheiros mansos que fazem
sombra a um pequeno parque de merendas. Logo após a rotunda, à esquerda uma
bomba de gasolina inativa, uma cápsula do tempo ao lado do qual jaz um bar há
muito fechado. Segue-se o largo das
festas, um quadrado de pó que se engala em agosto para as festas de São Romão e
alberga os mercados raquíticos que ali passam mensalmente. Depois está
cristalizado o antigo restaurante O Avelino, até há pouco tempo aberto e agora
de persianas perpetuamente fechadas. Á direita a Junta de Freguesia, o jardim
escola e o edifício da Caixa de Crédito Agrícola para nos lembrar que existe
ali uma extensão da civilização.
Abre-se aí a rua ocupada
lado a lado. Café e esplanadas com histórias antigas privam agora com lojas Pop
Up de decoração, restaurantes com comida vegan e imobiliárias hight end.
Nas manhas de verão, o trânsito pacato transforma-se numa hora de ponta, de
carros parados em segunda via, de camionetes de fruta ou pão a vender no estacionamento
e do povo que as rodeia, pessoas com roupa veraneante só de passagem ou a
borboletar pelos escaparates dos jornais na única papelaria da vila. Percorre-se
a rua como que superando a prova dos obstáculos para chegar ao fim e mesmo
antes de se voltar para as praias encontrar um pátio da antiga escola
transformado em estacionamento para duas food trucks, com hambúrgueres
gourmet e sushi, um último piscar de olhos a um life style estrangeiro
ao sítio.
Aí à esquerda ergueu-se
entrando pelo arrozal adentro, a novíssima Quinta da Comporta. O suprassumo do
luxo, construído no entorno da vila, mas tão longe de tudo e todos, quase como
se fosse uma outra galáxia, uma que o comum mortal não pode pagar.
Á apropriação da
arquitetura local juntou-se uns pós de arquitetura moderna, à cal das paredes
cores e texturas hippie chic e boho e por meio chamaram-se artistas atuais para
deixarem a sua marca no meio do nada, nas paredes e do chão que pavimenta os
caminhos entre quartos que ficam para lá dos muros que separam as galáxias.
Na rua, resquícios de
barracas de pescadores, umas reconstruídas na sua traça tradicional, outras
ainda que habitadas, votadas ao pitoresco das redes e dos objetos perdidos pela
entrada, como se as pessoas não tivessem noção do real valor do seu quadrado de
chão.
Nada daquilo estava ali.
Não quando eu era criança e íamos passar os dias à praia de geleira cheia e
bola na mão. Quando ir à praia era uma aventura programada, porque o
combustível era pago em notas de 500 escudos e poupado desengatando o carro nas
descidas. Nem estava ainda quando na minha adolescência ali passava os verões,
fazendo o caminho entre a vila e a praia de bicicleta com o avental do serviço
dentro da mala.
A berma da estrada era
incerta e agora é ladeada por um resort e uma ciclovia. O arrozal continua à
direita verde, húmido perene no vale, casa de cegonhas impertinentes que não se
assustam com o movimento.
Ao longo dos anos, voltei
muitas vezes ali, pude ver a mutação. Mas nunca, como agora, havia sentido esta
nostalgia. Ainda não tinha voltado para ficar, como quem volta ao lugar de
partida para refazer as coisas, numa troca de vida que ainda nem começou e já
me começa gorada. O local de partida não é mais o mesmo. Já não sei porque voltei,
se para recomeçar ou se para acabar de vez com o ciclo.
III
Na verdade, a
oportunidade de voltar ao Carvalhal surgiu do nada, mas pareceu um sinal
qualquer do destino e uma forma fácil de escapismo. Como se voltar para ali
fosse uma espécie de truque de magia e eu acordasse ao som das ondas, com menos
20 anos e pudesse rescrever as coisas.
Ainda não sabia bem onde
as coisas tinham saído do controle, onde eu tinha perdido o sentido de mim
mesma e me vi à beira da insignificância. O tédio da existência infetou-me cedo
na vida, e os dias passaram a suceder-se uns aos outros sem grande interesse
nem objetivo.
Às vezes penso que a
minha geração sofre de síndrome da Grande Festa. Cedo na vida estivemos numa
festa épica, onde a música estava tão alta que o sangue nos corria nas veias ao
seu ritmo. As luzes e as sombras, os rostos em êxtase, as drogas da moda, o clubbing,
as discotecas no auge e as festas de transe no mato. A perspetiva de que a vida
a seguiria sempre a melhorar.
Os primeiros da família a
tirar um curso superior, os primeiros a entrar num avião e a viajar, a falar
línguas. A carta aos 18 com o carro já parado na garagem, as expetativas.
As nossas e as dos
outros. E depois veio o Boom do Ano 2000, o atentado do World Trade Center e os
que lhe sucederam. Veio a crise do Suprime, o FMI e quando finalmente a ressaca
estava a melhorar a Pandemia do Covid19.
Ainda temos a boca seca e
a dor de cabeça sensível ao som, a ressaca tem já duas décadas e parece que
nada mais nos pode fazer sentir a euforia desses anos. Dos anos em que a luta
política eram as propinas e o nosso voto só poderia ser de protesto. O combate
social era a liberalização dos costumes, o aborto e a despenalização das
drogas.
Os adolescentes dos anos
90 achavam que esses eram os problemas do mundo. A crise climática ainda era o
aquecimento global e aprendíamos a reciclar com o macaco Gervásio nos
intervalos da novela.
Quem queria saber?
Fumava-se nos intervalos das aulas nos pátios da escola e podíamos faltar a um certo
de número de aulas sem que os pais fossem avisados. Havia uma displicência
nisso tudo, fumar passou a matar muito mais depois dos anos 2000 e atualmente
há policias à porta das escolas.
Para nós, a geração rasca,
o mundo era um parque de diversões, pouco mais tínhamos com que nos preocupar
se não em não cheirar a tabaco ao chegar a casa e ter a certeza de que ninguém
nos via entrar em bares onde ninguém nos perguntava a idade quando pedíamos
cerveja.
A Grande festa e despois
a enorme ressaca que lhe sucedeu.
IV
Parei o carro fora do
parque pago e caminhei até colocar os pés no passadiço de madeira e depois
entrar no vasto areal e encontrar o mar. A água do Atlântico continuava gelada
e Serra da Arrábida ainda mais presente na paisagem após os níveis de poluição
do ar terem baixado nos meses seguintes à pandemia. Se houve alguma coisa boa
que saiu desse período miserável das nossas vidas foi esse e o teletrabalho. Praised
be!
Os chapéus de palha da
área concessionada são em menor número e estavam mais espaçados do que quando
eu era miúda e nas praias havia-se inventado uma pequena barraca pé na areia
onde adolescentes se atarefavam a servir sangrias de espumante e caipirinhas
pelas espreguiçadeiras.
A tarde estava calma
embora ventosa, pensei se fazia assim tanto vento antigamente, se os dias
teriam esta luz ou se as pessoas pareciam tão alienadas. Os restaurantes sob as
dunas deixaram de ser de tijolo e foram substituídos por versões de madeira que
respeitam o ecossistema das dunas e os nadadores salvadores tinham agora um
posto avançado de vigília que substituiu a velha casota onde guardavam as
boias. Mas no seu conjunto é a mesma praia. A mesma convivência da parafernália do verão
com as artes da pesca, o velho trator de puxar barcos pela areal parado lado a
lado com jipes novos em folha com tração às quatro rodas que levam gente a
praias pouco acessíveis.
A mesma horda de mulheres vestidas de linho branco e
bronzeados de óleo de cenoura, os mesmo bandos de miúdos pré adolescentes
chupando gelados e jogando bola na área das redes e para lá da área
concessionada, o mesmo mar de chapéus em corres berrantes cheios de geleiras,
toalhas e pessoas em bando retidas entre a vontade de dormir a sesta e a
necessidade imperiosa de impedir os miúdos de se lançar ao mar.
Tudo aquilo desaparecia
em poucas horas, as pessoas arrumariam a tralha e saíram em debandada antes do
sol se por. Sobraria para a hora dourada apenas os casais apaixonados ou o
surfista ocasional. O silêncio da noite seria ensurdecedor, cortado pela
cadencia das ondas, o zumbir dos mosquitos e um ou outro riso abafado dos que
tardariam a sair das esplanadas dos restaurantes depois de um jantar mais
bebido e sem lugar para onde ir.
Não há bares. Não há pista
de dança, não há rua das lojas pedonal nem multidões. Este ano não houve sequer
os arraiais de fim de semana. O caminho que separa a orla da praia e os
alojamentos raramente se pode fazer a pé e apesar de a aldeia estar a escassos
3kms, a maior parte das pessoas não se faz ao caminho.
A noite começa nos
restaurantes e poderá acabar numa qualquer sala privada ou ser deambulada no
pinhal sem destino.
O tédio existencial a
apanhar-nos ali, nesse momento, bem me lembro. O Carvalhal não é uma estância
balnear em ebulição, não é uma praia da Oura.
A Costa do Alentejana é bem mais subtil.
Despi-me e mergulhei, um
mergulho profundo só terminado quando já me faltava o ar e o mecanismo de
sobrevivência me trouxe de volta ao de cima para recuperar o folego e o nervo.
À minha frente o oceano aberto, nas minhas costas o restaurante de praia, embora
vivesse agora entre paredes de madeira estava já em declino, como se o tempo
não lhe tivesse sido favorável. Meia dúzia de mesas ocupadas servidas por
jovens ineptos, tabuas a precisar de tinta, estação de radio errada, uma
cápsula do tempo bem fechada, embalagem nova, produto antigo.
Eu estava ali para mudar
varrer essa nostalgia para fora e dar alma à casa.
V
Não sei se a missão me
encontrou ou se eu a procurei. Pareceu tudo uma casualidade, uma troca de
cartões numa feira de Madrid uns meses antes do confinamento varrer as nossas
vidas como um tsunami. Esteban Garcia, empresário proeminente da noite de Ibiza
estava à procura de praias mais calmas para abrir um beach club
exclusivo, de luxo, uma pequena Ibiza num local pouco explorado. E embora não
seja a minha área, o meu conhecimento do local interessou-o. O encontro foi
igualmente casual por meio de conhecidos e a troca de cartões uma formalidade
da qual me esqueci até que algumas semanas depois me telefonou para falar mais
sobre o tema.
As praias, o publico que
visita a zona, como funcionam as conceções. Que percebo eu disso pensei, caro
Esteban eu percebo apenas de copos, de noite e de bares. No entanto, uma coisa
cruzou-se com outra, fomos conversando até ao dia em que se materializou.
Esteban havia encontrado
um espaço, comprou-o e achava que eu era a pessoa indicada para ir para o
terreno o orientar. O espaço era o meu antigo Estrela do Mar.
Por essa altura os dias
bafientos fechada no apartamento na cidade já não se contavam em dias, mas sim
em semanas. Nunca o espaço tinha
parecido pequeno até então, quem precisa de quintais e quartos extra vivendo no
meio de Lisboa?
A vida corre rápida na
rua, nos bares, nas galerias ou nos jardins. As compras são feitas à medida na
loja da esquina e os jantares maioritariamente fora. A roupa seca-se na
lavandaria, a bicicleta aluga-se na app, o carro é um Uber. A vida é feita em outsoursing,
não há o que acumular, nem os trapos das milhentas coleções que saem por
estação e depois da rodagem se despeja num qualquer contentor solidário.
Mas o confinamento deu-me
essa sensação de claustrofobia, o senso de não caber mais no espaço que habito,
de não caber no corpo que é meu.
E como se não bastasse, o
meu trabalho foi escasseando até desaparecer deixando-me á merce dos dias. O
tédio, o medo e a claustrofobia estavam em ebulição quando o Esteban Garcia chegou
com a proposta que à superfície parecia boa e era. Financeiramente falando,
profissionalmente desafiante, mas numa outra camada trazia-me de volta para uma
vida que eu havia já esquecido. Para as personagens e as situações mal
resolvidas, para outro tipo de claustrofobia, uma a céu aberto com cheiro de
maresia e quintal de areia.
Ainda assim pareceu-me
uma troca razoável enquanto falávamos e eu fixava as tabuas gastas do chão da
sala. Qualquer coisa que implicasse sair do meio das ruas vazias e sombrias de
betão, ainda mais que o resto do país abria já e nós continuávamos em estado de
calamidade. Nós os citadinos de noites longas em obrigação civil de
recolhimento, de distanciamento e de lanches antes das 20h00 em vez de ceias tardias
pela meia noite.
Pareceu boa ideia um
trabalho diferente, outro ritmo. Pareceu boa ideia um projeto com objetivos
concretos em vez das variantes do trabalho criativo das letras, parecia boa
ideia o distanciamento das tensões das relações que viviam já em desgaste. O
tédio dos dias. Não havia realizado até ali o quão vazio tudo era, acho que é o
que nos acontece quando finalmente há tempo para pensar, para nos pensarmos.
Viver na capital não nos deixa tempo ou simplesmente é mais fácil de fugir da
tarefa.
Não há que alimentar
depressões quando podemos bem ir ao cinema à segunda, beber um copo afterwork à
terça, passar por aquela exposição à quarta, deitar tarde à quinta porque é o
melhor dia para concertos em circuitos underground e depois é sexta e sábado
e no domingo há brunch tardio envolto numa névoa por entre a qual tentamos
montar o mosaico da semana com as amigas entre mimosas e as tostas de abacate.
Há sempre o que fazer,
onde ir e com quem estar. As relações são intensas enquanto duram e o final
chora-se numa pista de dança enquanto se avalia a possibilidade de encontrar
ali nova história, outro rastilho de queima rápida. Acendalhas que nos deixam
em chama e que esfriam deixando nada mais para trás do que carvão apagado.
Tudo isso se tornou numa
evidencia aberrante durante a pandemia. Tive tanto tempo para pensar-me, ali
estava eu nos 30 e muitos. Num estúdio, sem trabalho, sem semelhante e sem
sentido, remoendo cicatrizes.
A oferta de Esteban Garcia
pareceu a única coisa possível de fazer.
VI
Sempre me interessou a
dinâmica do fim de tarde na praia naquele cosmos de área concessionada. Os
salva-vidas vestidos de igual brilhando na juventude da sua pele bronzeada com
as jovens adolescentes gravitando por ali, atraídas como as melgas são para a
luz. Reparei que agora um deles é mulher, antigamente as miúdas não se
candidatavam a tal trabalho, mas isso abre todo um leque de novas interações e
a dinâmica é diferente. Agora adolescentes de todas os géneros gravitam á volta
dos uniformes.
Os novos apoios de praia
de pé na área e serviço aos chapéus trouxe toda uma nova forma de luxo. As
sangrias de frutos vermelhos e espumante podem rolar em jarros de plástico
pelos chapéus de palha enquanto os seus ocupantes de esponjam pelas
espreguiçadeiras mandando o moço por o serviço na conta do número do chapéu.
Ali, no aparente lazer
preguiçoso de agosto faz-se, no entanto, um intenso networking entre gente com
nomes compridos, os advogados e os CEO´s, as mulheres e os filhos crescendo
todos em conjunto para se perpetuarem nos seus papeis.
Mas a dinâmica que mais
me fascinou foi sem dúvida os bandos de adolescentes, o futuro da nação. Os
gaiatos acabados de entrar no Técnico discutindo entre o jogo de volley, as
miúdas invariavelmente perfeitas em biquínis lascivos de marcas sonantes. Os
louros palha, os nomes que se recolhessem da capa de jornal, quando os ouvimos
chamar entre uma bola perdida.
O exercício de sentar e
ouvir. Ouvir sobre a jarda de ontem à noite ou sobre o carro que eu tenho, o
ano escolar a seguir, a casa onde se está a ficar. Depois o exercício de
empatia, pobres ricos, alienados.
Quando era miúda
atraia-me tudo aquilo, qual a adolescente remediada parada à porta de entrada
não sonhou que a convidassem a entrar? Quem sabe aquela paixão de verão não se
tornasse num amor de Hollywood, quem nunca sonhou encontrar um infante rebelde,
rico e domá-lo como a um poltro? Quebrar convenções, menina pobre menino rico,
lutar contra tudo.
Enfim, também me havia
acontecido, a gata borralheira que ficava a varrer o restaurante depois de
fechar e os meninos que esperavam que saíssemos para irmos aqui e ali fechando
o círculo à nossa volta, tornando-nos especiais pelo menos até que cedêssemos a
algo.
Para eles, caçar a menina
pobre também tinha o seu quê de interesse. Lembro de um caso com um tal de
Martim. Era um doce de rapaz, só ninguém parecia saber, no entanto o meu eu de
dezasseis anos foi dura, demos uns quantos beijos por entre uns passeios de
jipe no pinhal, fumamos umas quantas ganzas nos fins de tarde e no fim do
agosto fomos às nossas vidas sem nada consumado.
Sem redes sociais, sem
emails e na precariedade dos números de telemóvel diluíramo-nos na história um
do outro.
Eu continuei a varrer o
restaurante ele provavelmente manda em algo mais.
Mas estão ali espelhados
os estereótipos, os herdeiros, as linhas genealógicas do passado e do futuro e
está ali o porque da total falta de empatia pelos que lhes estão abaixo. A
arrogância no tratamento e o sentimento de que tudo lhes é devido.
Quem nasce num meio como
aquele, cresce entre iguais não pode nunca desenvolver empatia pelos problemas
do mundo.
Por esta altura sorri por
dentro agarrei na roupa e sai em direção à esplanada em busca de um copo de
vinho branco fresco, credo é tão fácil divagar por tudo aquilo. É um quadro
imutável.
Dantes não o compreendia,
depois numa fase revoltava-me, agora é simplesmente indiferente.
É um absurdo, como diria
Camus, a mim batia-me agora na consciência como batem as ondas ao chegar à
praia.
.....