quinta-feira, setembro 27, 2012

Divagações sobre o Tempo VII


Podia ter sido ontem, esse fim de Setembro já tão longínquo.

Numa dessas semanas de tempo instável, de chuvas torrenciais seguidas por um sol aberto e franco. Chegando aqui. Podia estar a ser agora.

O olhar espantado sobre esse mundo todo novo, sobre as possibilidades que se abriam por debaixo dos nossos pés.

Os sonhos a caminharem para se tornarem realidade.

O mundo novo, a liberdade, a escolha, o tempo por nossa conta, só e apenas nosso para fazermos dele o que se quisesse.

Podia estar a ser ainda hoje, essa menina chegando de cabelo apanhado e maquilhagem exagerada. Enxergando-se nesses trapos antigos e ultrapassados, essa expressão de si.

Podia estar as sentir ainda essa sensação doce de colocar a chave na porta de casa, da madrugada e do nevoeiro húmido que subia pelas ruas, e as luzes, as luzes baças, alaranjadas reflectindo nas pedras da calçada.

Podia estar a ser ainda, as nossas vidas congeladas nesse plano, todo o tempo ainda para percorrer o caminho, todas as decisões para serem tomadas, todas as oportunidades ainda à espera para serem nossas.

Podíamos eternamente viver nesse estado de latente euforia, ser jovens. Ser mais que jovens, ser estreantes, ser enérgicos e esperançados, ser sem sombra de dúvida algo que ainda está para acontecer.


terça-feira, setembro 18, 2012

Divagações sobre o Tempo VI



Só mais um dia, sentado no degrau da porta da rua. Olhando quem passa enfiado naquela camisola de cavas, larga e desbotada e naqueles calções estampados.

Mais um dia acenando aos gatos, entretendo o tempo olhando as nuvens, cobiçando as mulheres que passam devagar, temendo escorregar nas pedras da calçada.

Mais um dia. Naquela casa sem janela, naquela rua íngreme, fazendo tempo entre o pequeno-almoço e o meio-dia.

Perdera já a capacidade de inventar maneiras de matar o tempo. Todas as paredes haviam já sido pintadas, a soleira da porta arranjada, o lustro puxado aos azulejos do chão.

Nada mais havia para fazer a não ser sentar-se ali, no degrau. Cuspir de vez em quando um pedaço de tabaco preso no lábio, falar sobre o que vem no jornal com um vizinho que eventualmente espreite à janela a meio da manhã.

Nada mais que observar o tédio dos dias.

Tivera um trabalho em tempos. Levantava-se de manhã cedo. Saia com o almoço, sentia-se cansado. Às vezes sentia-se mal pago, desejava o descanso e o conforto do lar.

Mal dizia o patrão, as dores nas costas, o tempo perdido nessa prisão.

Hoje nada mais tem a fazer que sentar-se no degrau pela manhã.

Não dorme até mais tarde. Não aproveita  a liberdade do ócio, resigna-se à pobreza dos dias.

Vê o tempo a passar, do seu degrau. Quer o mundo mudado, mas mais não consegue fazer para o mudar.

E fica ali, nesse movimento perpétuo, na sua camisola de cavas desbotada, como Sisifo, empurrando a sua pedra... arrastando-se de dentro para fora, de fora para dentro, vivendo resignadamente uma situação que não muda. Nem imaginando que poderia eventualmente mudar...

sábado, setembro 15, 2012

Sobre as manifestações...

São esse momento inédito e desorganizado em que pessoas tão diferentes se juntam.
Gritam, fazem barulho, barafustam e destilam alguma da sua desilusão.
Muitos não saberão bem por que estão ali. Nem tão pouco contra que moinho lutam. Mas a manifestação faz-se desse encontro de vontades, dessa necessidade de contribuir e de tentar, mesmo que de uma forma utópica, mudar o mundo.

***

Sinto-me sempre e invariavelmente emocionada quando ouço o meu povo cantar em uníssono o Hino Nacional. Deve haver, algures dentro de mim, um ser patriótico.

***

Não fui a Lisboa, talvez devesse ter ido. Talvez devesse estar lá e ser mais um número na multidão. Devia gritar palavras de ordem. Jogar pedras para a escadaria do Parlamento, ver petardos a rebentar. Estar ali  exposta e vulnerável, claustrofóbica no meio do medo de ser esmagada.
Mas devia ter ido. Ver a revolução, talvez não a fazer, mas sentir o que paira no ar. Se é esse ambiente pacifico. Se é que há verdadeira revolução pacifica, imaculada e sem sangue, sem dor e sem mágoas que fiquem para a história...

***

Não falei no megafone. Falta-me o jeito.
Mas se falasse teria dito o quão grande é a minha desilusão.
Não só porque afinal o mundo é mais negro do que cresci a acreditar. Porque afinal não vivemos num Estado justo e igualitário. 
Diria da minha desilusão de ver esta terra a definhar porque fomos esquecidos, porque somos poucos e não contamos.
A desilusão de ter apostado no Portugal profundo, na qualidade de vida da província, na promessa que o advento da modernidade nos colocaria sempre mais perto do mundo, mas que afinal, ao fim de uma década nos deixou ainda mais longe.
Podia contar do meu pesar pelo desagravo com que somos desperdiçados todos os dias. O talento, a energia e a vontade de trabalhar. Ou pior, como ao longo dos últimos anos, e apesar de termos estudado tanto, fomos tão mal educados e como o mérito deixou de contar e se transformou em números sem significado.
Diria que sonhei um dia com uma vida digna e desafogada, que me foi prometida em virtude do meu esforço, que era lógica, que era justa, mas que ainda não aconteceu.
Diria que me doí o coração de ver os meus velhotes abandonados às suas dores porque as suas pensões são de miséria e não há um lar decente que os receba, porque embora cada vez haja mais velhos, cada vez há menos dignidade em envelhecer.
Diria que não acredito nessa organização da sociedade, que não sei como se muda mas que algo tem de mudar.
Diria que mais do que triste e desiludida com as dificuldades de agora estou desolada pelos sonhos que vão tardar em chegar, pelo tempo perdido, pela vida gasta...

***
O mundo é tão vasto, a Terra generosa bastaria apenas sermos todos muito mais humanos.

quinta-feira, setembro 13, 2012

Sobre a boa vontade...


Há dias em que ela nos faz falta, mas não a conseguimos ter.

E depois, depois de termos sido impacientes, pouco disponíveis para os outros, de não termos dado tudo o que poderíamos dar, sobra essa sensação amarga.
Afinal fomos maus, egoístas.

Afinal o mundo só nos quer bem e nós temos um umbigo demasiado grande e absorvente.

Essa descoberta constante da nossa própria falta de altruísmo deixa-nos assim encalhados nos nossos próprios defeitos, aqueles que achávamos que estávamos a limar. 

Esses anos todos de lapidação, afinal pouco mais fizeram desse diamante em bruto que é a nossa alma.

Queríamos, de alguma forma que algo nos chegasse sem que tivéssemos de dar algo em troca. O nosso tempo, a nossa boa disposição, a nossa concordância com disparates, a alteração do nosso modo de vida, o nosso espaço.

Queríamos não ter de deitar conversa fora, de não estar à mercê do tempo.
Queríamos por vezes gozar o simples prazer da solidão, o conforto do silêncio. Existir apenas.

Mas temos de ter boa vontade. Ser com os outros, dispor de nós, retribuir, integrar, agradecer...

Às vezes falta-me tudo isso, admito. 
Não gosto que falte. Não gosto de ser mal agradecida, de não corresponder... mas não posso, não consigo ser, invariavelmente aquilo que o mundo precisa que eu seja.




segunda-feira, setembro 10, 2012

Sobre a Vida...



"Porque se quiséssemos um termo de comparação para a vida , o melhor seria o de um metropolitano, atravessando o túnel a cinquenta milhas à hora - e deixando-nos do outro lado sem um gancho sequer no cabelo! Cuspidos aos pés de Deus, inteiramente nus! Rolando por campos de tojo como embrulhos de papel pardo atirados para dentro de um marco de correio! E os cabelos puxados para trás pelo vento como a cauda de um cavalo nas corridas. Sim, são coisas destas que podem dar a ideia da rapidez da vida, a destruição e reconstrução perpétuas; tudo tão contigente, tão apenas por acaso..."

"A Marca na Parede"
Woolf,  V.

Divagações sobre o tempo V


E ser for isso que nos espera? Só e apenas a desconstrução do mundo como o conhecemos?

Se já passaram os dias dourados, se depois disto, de toda essa conversa de surdos, se depois do esforço e da indignação não nos sobra mais nada que dias cinzentos de inverno?

E se teremos desde já de sentir falta dos sítios onde nunca fomos, dos sonhos que não concretizamos, dos risos dos momentos de ócio que não poderemos gozar?

E se nos sobra só a depressão dos dias, a poeira de uma Era que nos chegou enganada, fora do seu tempo, indesejada por gerações e empurrada para a frente até ficar encalhada entre nós?

E nós, desencorajados, demasiado conscientes, demasiado instruídos e derrotados apenas possamos nos arrastar pelos anos, maldizendo o destino, sobrevivendo, azedando no espírito a revolta por todas as promessas terem sido quebradas, pelo mundo ser afinal um sitio cruel.

E se é só isso? Aquecimento global, tempestades, secas, desemprego, subnutrição, má educação e um fosso cada vez maior entre esse conceito de ter ou não ter. Ser ou não ser. Privilegiado de nascença ou indecorosamente plebeu?

E se séculos de evolução social desembocarem nessa terrível constatação que somos cada vez mais desiguais?

E se todas essas coisas adquiridas a que nos acostumamos,  todos esses direitos, esses confortos, essas certezas deixarem de o ser?

Que pensaremos então?

E se de facto, nessa organização social, com as evoluções tecnológicas, a sua demografia invertida e este novo modo de vida, não existe por principio mais trabalho para todos?

E se o problema não for a nossa austeridade, mas o mundo. Sim, esse mundo que gira e se transforma e continua a caminhar... não sabe bem para onde... não se sabe bem como...

Esse mundo que ainda descobre que já se fizeram todos os carros, já se construíram todas as casas e os LCDs não podem ficar mais finos?

Esse mundo que ainda descobre que evoluiu tanto, que nos excluiu...

Que pensaremos então? Quem seremos? De que cor será o futuro?

Que poderemos nós continuar a desejar?



quarta-feira, setembro 05, 2012

Lolita


"Um misto de ingenuidade e fingimento, encanto e vulgaridade, amuos azuis e jovialidade rósea, Lolita, quando lhe apetecia, tornava-se uma garota exasperante. Eu não estava, de modo algum, preparado para os seus excessos de tédio desorganizado e interesse tenso e veemente, nem para o seu estilo desleixado, melancólico, de olhar apático, e tão-pouco para aquela espécie de palhaçada difusa, que ela julgava denunciar uma personalidade «dura», à maneira de um garoto vadio."

Lolita
Nabokov, V.

terça-feira, setembro 04, 2012

Divagações sobre o Tempo IV



Era meio da manhã, o sol era quente mas não impiedoso. Era já Setembro e a brisa refrescara trazendo prenúncios de um Outono ainda distante.

Encostavam-se todos ao balcão de mármore branco, encardido pelo tempo e pelos copos de tinto.
O salão era amplo. Nunca teria sido bonito, mas sim o possível de se fazer. O gosto duvidoso da mistura de azulejos de fim de linha, a magistral lareira reinando sobre a sala, trono que os actuais Lcd’s queriam roubar, a cor ocre das paredes, os alumínios usados das janelas.

As cadeiras e mesas de café em ferro, de pés mancos sempre a entornarem os copos a quem se atreve a colocar os cotovelos em cima do tampo.
Todo esse cenário envolto numa névoa do tempo e fumo só perceptível depois de se entrar pela cortina de fitas.

Tudo parou ali.

Os homens sorvem o café com um cheirinho, sorriem abertamente num triste cenário de dentes podres e tabaco e as senhoras, oscilam o seu peso pelas cadeiras no ócio da manhã.

O trânsito lá fora é irregular, as casas dispersas, o mundo ritmado pelo som das notícias na televisão.

Os campos estão vazios, os tractores encostados, as festas de Agosto acabadas, os emigrantes retornados para longe.

Nada mais a fazer.

No ócio do tempo, no aborrecimento da existência, nesse tédio de coisas que não se tem para fazer se perderiam todos por ali. Deitando conversa fora, falando de um mundo conhecido pelo telejornal, dizendo lugares comuns. Falariam depois da vida dos outros, queixaram-se da sua própria vida até que o sol do meio-dia os chamasse para um desejado almoço.

Esse cenário, num ápice aparecendo aos olhos dos forasteiros. Aqueles que encostam no tasco à beira da estrada para um café salvador do marasmo da condução por estradas secundárias feitas de pisos novos e vazias. Daquelas que atravessam grandes extensões de mata, quilómetros e quilómetros de solidão.

Essas estradas que nos levam de uma região para outras, onde pequenos pormenores na vegetação ou nos hábitos das pessoas nos dizem que não estamos mais onde estávamos.

Pensou de repente em todos esses sítios desconhecidos, perdidos no mapa. Em todas essas pessoas cuja voz nunca se ouve, nem mundo profundo onde as leis dos Homens são diferentes, onde as mulheres se eclipsam antes dos trinta.

Fez-se silêncio à sua entrada. Pediu um café em voz baixa que pareceu ecoar pelos recantos do salão em ondas de choque abissais. As cabeças voltaram-se num silêncio profundo. Observaram o elemento estranho a si. Os calções indecentes, a figura esguia e o esgar de espanto por estar tanta gente naquele sitio e depois, como que por ordem divina, todos voltaram à sua vida habitual ignorando o forasteiro. Falando alto, bebendo, rindo de algo sem piada, simplificando a vida, vivendo-a ao segundo. 

Segundos que se transformam em minutos e depois horas, que todas juntas farão dias. Dias que serão anos sem significado, passados no mesmo balcão de mármore que estará apenas mais encardido da próxima vez que lá se parar.