quinta-feira, março 07, 2013

A ressaca

"O álcool parece ser único estimulo que Pavelov não poderia explicar. Voltamos a ele, mesmo conhecendo o único resultado possível, a execrável ressaca." 



CAPITULO I 
Acordar 

Não acordou, foi antes violentamente arrancada de um túmulo profundo onde jazia a sua mente inerte. O vazio profundo de repente trazido à confusão da realidade, num inspirar de ar ofegante, como se só naquele momento o seu corpo tivesse tomado consciência do importante que era respirar.

Lutou algum tempo contra a incerteza de saber onde estava, quem era, como fora ali parar. Ficou por uma fracção de segundo revendo os últimos momentos de vida, em flashes, como dizem que fazem aqueles que estão prestes a morrer. Mas as suas horas não tinham nexo, não vinham organizadas numa cronologia, eram apenas lapsos de si, ou de alguém,  alguém dono dos despojos sepultados naquele lugar lubrege, bafiento e de cheiro indefinido mas desagradável. 

Um misto de suor alcoolizado e saliva gasta, misturada com várias nuances de tabaco exaladas pelo cabelo, pelas roupas espalhas pelo chão e pela sua própria pele que estava baça e seca com o trigo no pico do Verão. 

Engoliu então em seco, e foi invadida por um sabor acido e amargo no qual conseguia ainda reconhecer traços de gin. À língua seca, e a esse sabor que sabia ser perpétuo por um dia, juntava ainda uma dor aguda e gritante que se lhe instalava nas fontes, um peso morto na parte de trás da nuca e um mal estar corporal generalizado. Uma espécie de constipação que lhe pesava nas pernas, embora ainda não se tivesse levantado.

Recusava-se a mexer, parecia que se o fizesse alguma bomba explodiria dentro do seu crânio,  no entanto, a bexiga gritava também e a sua mente confusa teve de ceder.

Em movimentos penosos e lentos, pousou os pés no chão. Um alivio, entre-cortado por uma tontura nauseada, reconheceu o seu tapete, felpudo, macio e quente. Ao mesmo tempo que caia sobre o seu corpo defunto o peso dos excessos, respondia a primeira pergunta. "Onde estou? No meu quarto." 

E a cada passo que dava o peso do seu corpo magoado abatia-se sobre si. Uma dor abdominal consistente com um estômago deslavado, uma sede que prometia nunca ficar saciada e aquela confusão mental, que a deixou perplexa a olhar para o  espelho, tentando reconhecer-se no reflexo embaciado.


Capitulo II
Viver

A falta de sono acabava-lhe com a tolerância. Para si, para com os outros e  para com o mundo. Ainda mais naquele estado desorganizado de ideias, aquela meia amnésia  baralhada que a afectava.

Avaliava cada rosto com esperança ténue de reconhecer alguma expressão, alguma dica de que a tinham visto na noite anterior. Algum vislumbre de uma conversa que não se conseguia lembrar ou algum olhar de lado que significasse algo de embaraçoso que a sua mente resolvera simplesmente apagar.

Mas o mundo padecia todo de uma apatia generalizada e inexpressiva, e a sua mente baralhada e ansiosa por se lembrar afundava-se em considerações auto-recriminatórias sobe as suas opções.

Ainda assim preferia o silêncio àquelas conversas banais, a ter que dar assistência a pedidos, a explicar situações  ou a ter de esforçar-se para ser um ser social.

Mas ninguém parecia disposto a dar-lhe esse beneficio. Insistiam em perguntas, em revisões ou em tarefas urgentes e o seu ser ensonado e confuso vergava perante um estômago dorido, uma cabeça pesada e um hálito vergonhoso. Podia senti-lo.

"Porquê?"-  perguntava-se. 
"Porque não me deixam estas pessoas velar a minha morte prematura, num silêncio franciscano em reclusão, em jejum de pão e água, ou aspirinas e vitamina C."

Ao longo do dia a esperança esgotava-se em si com o cansaço, os olhos pesados, a paciência perigosamente no limite, a confusão insuflada pela frustração da amnésia, a língua ainda mais encortiçada e aquele sabor intragável que não desaparecia.

A sede insaciável pedia mais agua, mas o seu estômago não mais a queria. E num ou noutro momento de clarividência vinha-lhe uma ideia. "Estive aqui. Disse algo ali, tropecei em alguém, quem era aquela tipa?"

E quando por fim chega o final da tarde, e arrasta o seu cadáver pestilento  para casa, há já um pequeno guião da noite. Vislumbra já quem é, imagina porque está ali e aceita que se a sua mente se esqueceu, ninguém reclamou, não deve ter sido importante.

Capitulo III
Dormir

"Há dias que simplesmente tens de viver" pensava. Por mais que se deseje deitar e só acordar depois de amanhã.

Arejára o quarto e mudára os lençóis. transformara o cheiro bafiento e alcoolizado em perfeita harmonia de amaciador de flores e incenso. 

O seu corpo maltratado deitava-se agora numa alcova confortável esticava-se exausto pedindo um sono reparador.

Na mente imperava ainda um névoa de confusão. "Tinha sido boa a noite anterior? Havia se divertido?" 
Tentava reviver esses momentos, o escalar de entusiasmo, os membros que se soltam e as palavras que ficam fáceis.

Os risos colectivos das piadas que não diria noutra ocasião e os pensamentos partilhados num ambiente de cumplicidade entre amigas.

A música que cresce dentro de si, pulsando, acelerando o sangue que bombeia o seu coração e as luzes frenéticas liderando todo o movimento em volta de si.

Podia reviver esses momentos, mesmo na névoa dos acontecimentos. Lia em cada um desses momentos a fado do dia seguinte e ainda assim, durante a sua vida esses dias execráveis continuavam a acontecer. A si e aos que a rodeiam. Até mesmo àqueles que reclamam não ter ressacas e aguentar todo o álcool do mundo.

Pensava que nunca poderia ser alcoólica  jamais aguentaria acordar assim todas as manhãs. Mas em última análise, isso seria a sua ultima preocupação quando começasse a beber.

"Inexplicável". O Álcool parece ser então um condicionante que não conseguimos apreender. Da acção surge sempre o mesmo resultado. E o resultado é mau.

Pensava  "valerá o mal que faz pelo bem que sabe?"

 Ou a nossa necessidade de alienação não tem limites?