domingo, abril 28, 2013

Ensaios IV

"Estava a afogar-se em si. Naquele charco escuro de emoções indecifráveis. Sentia o ar a faltar-lhe, engasgava-se na sua própria saliva e por momentos a sua vista toldou-se, o mundo cobriu-se de negro, poderia estar a morrer naquele momento, afogada nas suas entranhas acossadas."




É sempre mais fácil ser-se mau, sentir coisas feias, espumar de raiva enquanto se imagina que o mundo uniu forças para nos maltratar.

Dá-nos força espernear até ao fim, gritar coisas infames, achar que doí um pouco menos se espalharmos a dor.

E depois, como se fossem pequenos picos de adrenalina pode parecer-nos mais fácil estar vivos se formos significantes, se nos for permitido dizer, sentir, pensar o que bem nos apetecer.

Iliba-nos, ser simplesmente maus, porque só o podemos ser em resposta, porque nos livra de culpa, somos maus, porque nos fizeram ser assim.

Deixar ir, perdoar, aceitar, começar de novo, amar em silêncio aquilo que já não podemos ter, nem ser é difícil. É um esforço constante, é exigente, é pura abnegação. 

Deve ser por isso que há tanto mal no mundo, ser-se mau é fácil, é simples e instintivo. Está em todos nós, é visceral.

Ser-se realmente bom, humilde, viver em paz é uma obra nunca acabada, é um caminho longo feito contra a corrente. É a mente todos os dias a lutar contra o sangue que nos pulsa nas veias, contra um coração que bate apertado e explode por vezes dentro de peito. 

Dentro de nós, é essa luta consciente. Entre aquilo que somos e o melhor que podemos ser...

sexta-feira, abril 19, 2013

Ensaios III


A estrada tortuosa está ladeada de pequenos muros de granito. Pequenas pedras empilhadas à força de braços, o labor de gerações limpando terrenos, abrindo campo, criando espaço.

No inverno,  essas pequenas pedras ficam manchadas de verdes. Escuros e claros, tufos de musgo indisciplinado e as oliveiras entristecidas pendem sobre  as silvas que crescem ao sabor da humidade que paira nos pontos sombrios.

As casas caiadas, estão também elas manchadas, de pedra, musgo e de anos de abandono. Por detrás da fachada da frente nascem barracões, por entre caminho empedrado e ao acaso, são plantados vasos de flores, casotas de cães e alfaias que ficam perdidas no tempo e no desuso.

Na maior parte das vezes a estrada tropeça em casas vazias, denunciadas pelas ervas que crescem à porta. Outras vezes, há apenas ausência de vida. Estão já esgotados os risos infantis e os latidos dos cães, presos nos terrenos, ecoam desoladamente sozinhos.

Ao longe pode ver-se o serpentear da estrada. E vê-se que sobe, curva contra curva pelo vale até desaparecer para lá do topo da colina

O sitio parecia esquecido pelos Homens. Onde o dia ainda se fazia ritmado pelo bater do relógio da torre da Igreja.

Num desses lugarejos onde os homens ficam velhos encostados ao mármore encardido do balcão e as mulheres se apagam dentro de uma bata às flores encardida. Bata que um dia substituem pelo negro perpétuo enterrando-se em vida.
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Mantinha-se sentada à empena da casa, encolhida numa cadeira baixa de pau, aproveitando a medo o pouco sol doentio.

Tapava a cabeça com um xaile coçado de malha, herdara de alguém da família. Peça pesada, de um negro sepulcral, um sinal da sua condição de vida.

Observava o silêncio dos seus dias. Era tal a quietude do sitio que poderia adivinhar quem lá vinha pelo trepidar da estrada. Conhecia-os a todos. Aos poucos que por aí passavam, contornando os muros de granito subindo às hortas, conduzindo gado.

Lembrava-se de quando era jovem e ainda brincavam crianças na eira, os seus gritos infantis ecoavam pela encosta replicando-se pelas casas , contornando o adro da igreja.

Lembrava-se de si. De si antes do negro do xaile.
De ser mais alta, antes de se curvar perante o peso do tempo. Dos passos leves e ágeis, dessa alegria ingénua de viver ao ritmo de cada dia.

Fitava a suas mãos enrugadas.Os mesmos dedos longos e tortos, a aliança que nunca tivera coragem de tirar, as suas mãos, agora as mãos de uma velha sentada à empena da casa ao sol de inverno.
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Estavam mais homens à porta do que dentro do café. Estava frio, e o sol doentio de inverno batia na empena da casa à altura dos joelhos e fugia a passos largos para se por por detrás da colina.

Estava encostado à soleira da porta e brincava com as fitas velhas e sebentas. Observava ao longe a velha de negro.
Sempre sozinha. Sentada no banco baixo, encostado à parede caiada, de xaile pesado pela cabeça.

Não lhe lembrava de a ter visto noutro sitio, como se tivesse sido ali colocada já velha, já curvada pelo tempo, já coberta de um luto perpétuo, já esquecida pelos dias.

Impressionava-se ás vezes por aquela solidão. A solidão que não conhecia. Na qual não pensava, mas que temia. Qual seria a sua história? A história desse luto, desse silêncio. Não podia deixar de se perguntar.
Espreitava a rua meio a medo, meio dentro meio fora. Fugindo de todas aquelas vozes alteradas, do fumo do tabaco que se misturava no ar com o azedume do vinho a martelo.

E ali, no meio de tanta gente comparou-se com a velha do xaile negro. Naquele dia de inverno, encostado à soleira da porta, queimando mais um cigarro olhou de novo a empena da casa. Mais um dia na vidas dos sós....

E sentiu por momentos, como se tivesse companhia.

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quarta-feira, abril 10, 2013

"Começar a pensar é começar a ser atormentado" Camus, A.



Quando era adolescente achava que era de esquerda. Ser adolescente no virar do milénio era isso.
Ser-se despreocupado, muito liberal e intrinsecamente livre. Se eles defendiam o aborto, a despenalização das drogas e outros assuntos fracturantes da sociedade era com eles que estávamos  porque nada mais havia para defender.

No interior das nossas casas de classe média a vida prosperava e dava para os gastos, o futuro estava traçado numa qualquer universidade, bastava-nos fazer a nossa parte. Podíamos então ser rebeldes sem causa, apolíticos, amorais e despreocupados. As discussões de mesa de café poderiam ser sobre tudo, sobre futuro, o ultimo concerto unplugged da MTV, ou aquele filme ou a festa de logo à noite. Nunca, jamais sobe essa questão de fundo: "Quem somos nós, que fazemos aqui, que país é este onde vivo?"

Filhos dos que viveram a revolução de Abril, calhou-nos a sina de ser a geração dos acomodados, sem ideais nem ideologias.

Crescemos ao mesmo tempo que a web evoluía, que os telemóveis vieram para ficar, nesse novo mundo em que a informação está à distância de um clique, nesse mundo onde tudo é acessível, escolhemos não nos preocupar.

Quando passamos de adolescentes para jovens universitários era suposto termos começado a pensar. Observar o mundo.

Mas o admirável mundo académico não mais foi que um convite à boémia e à aprendizagem acrítica de uma qualquer ciência.

Devíamos estar a falar do mundo nas meses de café, mas como poderíamos falar de um mundo que não conhecíamos? Tivemos quatro anos para viver de forma livre. Para acabar as cadeiras em serviços mínimos nas sucessivas épocas de exames, para gastar os trocos em minis e esperar que não nos chumbassem por faltas.

Alguns de nós líamos livros ou víamos filmes pelas madrugadas de copos, aprendemos coisas.

Li Milan Kundera e ele falou da Primavera de Praga e a esquerda deixou de ser livre para mim. Como li Philip Rooth a imaginar a América sob uma conspiração de direita, e a direita não poderia nunca ser atractiva para mim. Li Orwell e qualquer sistema que limitasse a liberdade dos cidadãos era o fim, li Garcia Márquez e nas suas histórias a  inquietude de uma América do sul que não se conseguia encontrar no meio de ditaduras e golpes de estado e as guerras pelo poder tornaram-se impensáveis para mim. Li Camus, o absurdo da vida que explicava tudo isso…

Conhecia assim um mundo romanceado dos sistemas. A minha geração não leu manifestos, não sabe o que disseram os filósofos,  espera única e simplesmente que  vida flua como um rio, desresponsabilizando-os dos estragos da corrente.

Chegamos ao dia de hoje neste impasse, a não compreensão do mundo que nos rodeia. Porque estamos nós a viver esta crise?

Quem é a direita, quem é a esquerda? Que sentido fazem hoje sistemas políticos herdados de um mundo pós-revolução industrial? Renovados no pós-guerra? Que sentido fazem, estas definições, baseadas na organização do trabalho, quando o paradigma de trabalho mudou tanto, ao ponto de ser irreconhecível?

Ainda assim, deveríamos saber quem é quem. Porque é desesperante não saber de que lado estar, em quem acreditar, que teoria defender.

Hoje, jovens adultos somos inertes, porque sofremos de iliteracia politica crónica.  Porque não nos preocupamos, porque não fomos educados para nos preocupar, porque o mundo contemporâneo criou-nos esta sensação de liberdade falsa, uma sensação que não incluía deveres. Apenas direitos.

Hoje já não sou de esquerda. Mas não sei que possa ser. Não acreditando numa organização politica que considero desenquadrada, nem numa democracia desajustada retrograda e ultrapassada que posso fazer eu?

Continuar a viver e a votar no mal menor? Aceitar que não percebo o que ouço, que há coisas no mundo da política que simplesmente não têm explicação? Estão no limiar do absurdo…

Mais desesperante do que acreditar no lado errado...é mesmo não ter no que acreditar.