domingo, março 30, 2014

A estrada perdida...

Saiu para o ar da noite meio entorpecida agora que a adrenalina da festa se estava a esgotar. Atrás si fechava-se o mundo numa noite serrada Iluminada por estrelas baças.
As luzes iam-se esgotando e com elas o burburinho de pessoas que abandonavam o local, umas cambaleantes, outras efusivamente alcoolizadas, outras ainda silenciadas pelas exaustão.
O frio da noite era-lhe mais familiar do que o frio do dia, tremeu-lhe o corpo por debaixo da fina camisa de seda, mas sentiu-se libertar em pequenos espasmos, como se o frio lhe trouxesse de volta a consciência. Havia ainda aquele cheiro de pinhal, de pinho molhado, de terra fresca coberta pelo orvalho de uma manhã que não tardaria a chegar. Rebeca caminhava descalça carregando uns sapatos torturadores nas mãos, tateada o chão frio com cautela e os seus pés estavam já dormentes quanto alcançou o carro.
Lutou com a pequena mala para encontrar a chave, o frio continuava a entrar-lhe pelo corpo e havia pisado algo que lhe magoou o pé direito, enquanto procurava manter o equilíbrio entre o cansaço e o torpor alcoolizado.
Sentia-se como alguém que vinha da festa, um travo amargo na boca, a vista pesada e a cabeça cheia de emoções que ainda não tinha tido tempo de absorver, de espremer e retirar o sumo. Tantas caras, tantas conversas cruzadas, o êxtase da dança, a música a correr nas veias e um coração a bater ritmado.
A mistura de sabores, de comida, de bebida, de perfumes e tabacos. As cores e os brilhos. As festas daquele lado afastado da região eram sempre memoráveis. Pecavam pela viagem longa, pela estrada deserta que atravessa o pinhal, denso e obscuro. Um espaço quase encantado e ao mesmo tempo tenebroso pela escuridão.
Mas Rebeca colocou as mãos firmes no volante. Ligou o Radio, I´m derenged do Bowie começou a tocar, pareceu-lhe providencial, até casa seria uma espécie de estrada perdida, minutos longos de encantamento Lynchiano.

***

Rebeca sabia que conduzir não trazia ao de cima o melhor dela. O seu temperamento pacifico alterava-se quando punha as mãos num volante. Impacientava facilmente com outros condutores e era dada a pequenas provocações na estrada. Era ainda agressiva na forma como manejava o carro, gostava de velocidade, gostava de sentir a maquina a vergar-se pela perícia das suas mãos.
Gostava de fazer curvas perigosamente e de jogar a sorte usando pés pesados no acelerador.
A noite continuava fresca, Rebeca levava uma pequena fresta do vidro aberta para respirar, pisava o acelerador com convicção, “derenged” ecoava a um ritmo frenético a a estrada afunilava entre riscas brancas perante a sua percepção meio toldada.
Mas o ritmo do som cadenciava um coração aflito que lhe bombeava o sangue nas veias, o sangue de um corpo cansado e sujo, intoxicado, fazia crescer em si um frenesim interior.

“I'm deranged
Deranged my love
I'm deranged down down down
So cruise me babe cruise me baby…”

Ecoava, pensava se não estava mesmo demente. Rebeca achava que se alguém ficasse demente na estrada seria esta a musica que o e enquadrava.
E o que era demente naquele fim de noite escuro e fresco? A contínua vontade de acelerar e começar a fazer curvas apertadas de sentir o carro a derrapar na gravilha para lá do alcatrão quando media mal o caminho e saída da estrada.

“And the rain sets in
It's the angel-man
I'm deranged”

Ou seria demente puxar o travão de mão, ali só porque sim, Rebeca pensava nisso enquanto acaraciava o manipulo do travão, como se fosse uma arma letal. Letal e atraente, quase irristivel. Por vezes sentia essa curiosidade animal, “E se eu puxasse o travão de mão, que aconteceria?” O carro rodaria sob si na estrada, ela perderia o controle da maquina que derraparia até embater numa dessas arvores gigantescas, ou capotaria por uma dessas bermas ladeadas de barrancos, o seu corpo quebraria das mais variadas formas entre metal retorcido e frio ou ardente do fogo, rasgando-lhe a carne. E o sangue continuaria a ser bombeado, ainda quente ao ritmo de Bowie, mas para fora de si como que drenando-a de vida. Séria isso, seria assim? Rebeca continuava com a mão pousada no travão, afagando-o como se fosse a alavanca a puxar em caso de emergência. A estrada continuava a estreitar-se entre as linhas brancas, curvando-se perante um percursos acidentado pelo capricho do pinhal.
Carregava como mais convicção no acelerador, pisava o travão ao entrar na curva, doí-lhe o pé magoado e descalço, mas era indiferente a adrenalina crescia-lhe encadeada pelas luzes que se aproximavam vindas de frente, na imensidão do pinhal do silêncio daquela noite fresca e depois de quilómetros de demente solidão tinha companhia na estrada.

“The clutch of life and the fist of love
Over your head
Big deal Salaam
Be real deranged Salaam
Before we reel
I'm deranged”

"Derenged" continuava a ecoar, Rebeca distribuía a mão direita inclemente entre as mudanças que metia com convicção e o travão. E acelerava, abriu um pouco mais a janela e sentiu o ar a uivar no topo das árvores, da frente não baixaram os máximos, a estrada entre as duas linhas deixou de afunilar no meio da velocidade para se transformar num grande clarão.
Rebeca deixou de saber de si, e soltando a caixa de mudanças, puxou o pé ferido para o travão pé que lhe escorregou no sangue quente que não reparou lhe corrida da ferida.


I'm deranged… fechava em acordes frenéticos, depois um embate ensurdecedor, depois o silêncio cortado por um coração que batia…bombeando sangue quente para fora do corpo, drenando-lhe a consciência... Rebeca lembra ainda do travão de mão...dessa curiosidade insatisfeita antes de se ausentar de si.

quarta-feira, março 26, 2014

Será que quero mesmo voltar a estudar Jornalismo?



Quanto mais leio sobre jornalismo e jornalistas...mais me convenço que devia ter tirado um curso de agricultura, é que as couves podem ter coração, mas não chegam a ter umbigo...

Não há no mundo profissional classe operária mais incapaz de se distanciar de si mesmo, de se relativizar.
Os jornalistas deste mundo passam mais tempo a debater-se do que a debater os problemas que se passam lá fora. 

Depois correm rios de tinta (espera…acabou a tinta, agora são só zeros e uns!) por causa do comentário de domingo e da conduta do Rodrigo dos Santos ou por causa da reportagem sobre o Tipo do Kit e das Marés Vivas que vêm a Portugal. A esta última chama-se “infotainment”, goste-se ou não, que há para debater sobre isso?

No entanto é irresistível empolar discussões, dá-nos um sentimento de importância.

Porque num mundo onde o papel do jornalista se vem desvanecendo, gastas que estão as páginas de jornal que já nem para enrolar peixe servem, nesse mundo de jornalistas sentados, de pessoas pouco curiosas, de histórias copiadas e embaladas como numa linha de montagem. O jornalista não é mais um Ser importante. É um tipo sentado na linha de produção, que pica o ponto para entrar, que tem de mostrar produtividade. É um tipo como os outros, e não precisamos de muitos anos na escola para fazer copy/past e interpretar o corretor de erros do word.

Quando iniciei o Doutoramento no ano passado, ia cheia de perguntas e queria muito encontrar respostas. Depois percebi que num programa de doutoramento em Ciências Sociais é suposto encontrar mais perguntas e coloca-las a um nível filosófico que transcende a interpretação do dia a dia e se situa no éter das questões eternamente por responder.

A pouco mais de um mês de decidir se quero fazer o reingresso no Doutoramento, de decidir se devo pedir aos senhores para me aceitarem de volta, debato-me com esta questão. Quero mesmo voltar a estudar jornalismo?

Quero mesmo pegar no trabalho académico de toda a minha vida adulta e voltar?
Continuo entusiasmada com os modelos de negócio para os News Media e continuo a achar fascinante a entrada nesse admirável mundo novo? 

Tenho o que é necessário, gosto mesmo disto?

Ou é uma paixão platónica…daquelas que nutrimos ao longe….destinada a nunca ser consumada?



sexta-feira, março 21, 2014

“Frankly My dear... I don´t Give a Damn”


Lembro-me de que quando era pequena achava que a vida das pessoas não existia para além de mim. Um dia, numa das muitas vezes que o meu pai me foi buscar a casa da mãe, numa dessas viagens que começavam comigo a soluçar colada ao vidro do carro, vi-as a desaparecer no afunilar de uma rua. As suas vidas ficavam então inanimadas, inexistentes. Todos os seres funcionavam como figurantes do palco que era a minha existência. 

A fase egocêntrica. Eu no centro do mundo, o mundo dos outros a confluir no meu. Isso aconteceu quando eu tinha seis anos. 

 *** 

Enquanto crescemos apercebemo-nos da nossa insignificância no girar do mundo. Se eu desaparecesse todos os outros seres continuariam a respirar. A viver, não seriam inertes nem incapazes, a minha existência é tão só uma figuração na vida dos outros. 

O meu mundo, uma irrelevância. A inversão do princípio da nosso existência é um processo lento e doloroso. Escusamos-mos a aceitar que não somos especiais, nem únicos, nem sequer necessários. Somos peças. Somos até, salvo raras excepções, peças desnecessárias. 

Como formigas num formigueiro. Soldados, mantendo a engrenagem viva, ocupando espaço. Sendo um escudo. 

***

Quando eu digo que não gosto muito de pessoas, sei que às vezes sou mal interpretada. Adoro pessoas, as minhas pessoas. 

Depois há um mundo de pessoas que são um mar de angústia, de frustração de incógnitas e preocupações. As pessoas, na generalidade, as pessoas desconhecidas são más notícias. São difíceis de ler impossíveis de antecipar. 

As pessoas têm razões que a própria razão desconhece. As pessoas são difíceis. Às vezes gostava de ter de novo seis anos, gostava que a vida das outras pessoas se eclipsa-se no virar da esquina. Gostava de não ter de pensar no que elas vão a pensar para casa. O egocentrismo da infância, era então uma santa ignorância. 

*** 

E um dia estamos tão cansados desse jogo de leituras, de rostos e expressões. De expectativas. Das nossas por cumprir, das dos outros incumpridas. 

De nós esperando, dos outros à espera. Cansados de achar coisas, de esperar, as expectativas matam-me. 

Que só nos apetece dizer “Frankly my dear, I don´t give a damn”. 

E ansiar ser capaz de deixar de me importar de vez…

quarta-feira, março 19, 2014

A beleza...

A beleza de uma tarde de sol e vento fraco, apenas uma brisa.

Do silêncio dos sítios que vivem e respiram. Com gente dentro, e um mundo inteiro lá fora.
A beleza dos sons, dos que sobressaem do silêncio em harmonias perfeitas. Capazes de nos emocionar, de nos enraivecer ou de nos fazer sonhar.
A beleza dos sabores crescendo-nos na boca. Desdobrando-se em notas e memórias.
A beleza de palavras conjugadas da forma certa, expressando na plenitude o nosso ser.

A beleza das coisas mais simples que podemos ser…
Estou fascinada pela beleza das pequenas coisas...

segunda-feira, março 17, 2014

"There is no love of life without despair of life." Camus, A,


Há dias em que parece que o mundo nos dragou a alma, chegamos a casa vazios. Questionando, uma e outra razão. Desejando coisas que não podemos ter, desejando respostas, certezas, indicações e uma via aberta para a vida. Há dias em que nos deparamos connosco. E apesar de termos a certeza que estamos a fazer o melhor que podemos, temos a certeza que não sabemos o que estamos aqui a fazer.


***

Sai para a rua e respirei. Ar frio e vivo a encher-me os pulmões, quase a queimar de vida.  Essa necessidade eléctrica de me mexer, essa energia pouco positiva a transbordar, a querer sair e abandonar-me.
Esse momento de conexão, em que as imagens e os dias se rebobinam na nossa mente ao ritmo da passada, cadenciando com o baque das pedras da calçada. Um e outro assunto a ser arrumado no seu respectivo lugar. Problemas a surgirem e a fugirem de nós. Correr e pensar.
Pensar enquanto o frio da noite substitui o frio do dia. Enquanto os cheiros da escuridão se instalam e se sobrepõe aos cheiros do movimento.
E sinto-o, um coração que bate e se esforça e se supera. Sinto que tenho sangue nas veias e que o posso fazer circular.
Sai para a rua e respirei, respirei fundo.  
É como sentar e pensar. Sentamos e pensamos cada vez menos.
Vivemos nesse ritmo de coisas a sucederem-se sem parar. A entrar e a sair de casas, de sítios, de peças de roupa.
A nossa vida invadida pela vida de outros. Todas as versões de nós a existirem ao mesmo tempo, a trabalharem, a viverem. Todas, ao mesmo tempo. Nem uma a parar para pensar. 


                                                                                 ***

"Porque estás aqui comigo?" - perguntou-lhe olhando-o nos olhos, num tom desafiador
"Olha para ti, podes estar com quem quiseres, podes escolher. És bonito, és charmoso. És relativamente jovem e desimpedido. Porquê comigo?
Eu que sou um significante nada. Que não sou bonita nem feia. Nem alta nem baixa. Que falo baixo e me fica tanto por dizer.
Logo eu, a desenquadrada, eternamente deslocada onde quer que esteja. Eu? Que nem sou assim fã de pessoas e só agora estou a aprender a viver. Questiono-me e espanto-me. Queria saber."

***

Inquieta-me as pessoas. O vazio que lhes vejo, o mar de inquietações. Imagino o seu interior debatendo-se com o dia a dia, incessantemente sem parar, sem momentos de silêncio, sem se sentarem para pensar.
Inquieta-me o escuro, essa vontade que me surge de as salvar, de as retirar da inercia da vida, desse quotidiano que achamos que temos de viver. Inquieta-me que me inquiete.
Porque revejo os pequenos nadas nas duvidas da sua existência. Da minha própria existência e insatisfação.
Como Sissifo, carregando a pedra pesada que é a nossa mente, ela sempre rolando, recuando, dizendo-nos que não.

***
Que andam as pessoas a fazer? Porque escolhemos o que escolhemos, porque o fazemos?
Continuamos no absurdo da vida?
E essa ausência de explicação... a incerteza. É incessante. As duvidas, o desconforto. Deviam ser boas, deviam ser motivantes. As dúvidas lançaram homens ao mar e descobriram novos mundos.
Estaremos acomodados no dia que descobrirmos todas as certezas.
As dúvidas são inquietação.
A inquietação é criadora.
Criamos inquietos.
Vivemos. Inquietos e cheios de dúvidas.
Estamos vivos.
(Mesmo sem saber o que estamos aqui a fazer.)





segunda-feira, março 10, 2014

A Síndrome da solidão.

Eu vivo sozinha. Esta é a minha casa. Ninguém me chateia eu não chateio ninguém. A minha família vive noutras cidades, ao longo dos anos os amigos mais chegadas foram indo embora, cada um para a sua vida, dispersando pelo mundo.

Embora eu conheça muita gente e tenha muitos e bons amigos, estou, na prática, sozinha. Aqui, em Portalegre ou em qualquer outro lado do mundo.

Isso não é um problema na maior parte do tempo. Sempre fui muito autónoma, há poucas coisas na vida que eu faço com os outros que não posso fazer sozinha, não morro de solidão, nem me aborreço, considero que tenho recursos e uma vida interior capaz de me entreter por muitos e bons dias.

Treino sozinha com a mesma vontade com que vou ao estádio treinar com a equipa, cozinho para mim como se tivesse de alimentar a família, saio e passeio, não fico em casa só porque não tenho com quem ir.
Não sou uma solitária, tenho amigos, convido-os a vir a minha casa, combino cafés, saímos para beber um copo, vamos a consertos. Eu vivo com outros, eles só não vivem na minha casa.
Eu vivo sozinha. [Ponto] Isso não é um problema para mim, parece às vezes ser para os outros.

Esta conversa porque no outro dia parti a cabeça, fiquei atordoada e não havia lá em casa  ninguém para ver se era grave, para me amparar na queda. Eu tenho dois telemóveis e três dispositivos ligados em permanência à internet, nunca estás virtualmente só, mas depois precisas de ir perguntar à farmácia do lado se se vê o cérebro ou se podes ir treinar.  Tudo bem, é o preço a pagar, como tudo na vida há prós e contras. Eu sei os contras, há que os contornar.

Mas isto deve ser socialmente estranho, digo. Se não, pelos vistos é algo que merece uma certa compaixão, porque “coitadinha, não tem ninguém que a venha cá buscar? Uma menina tão bonita…aiii diga lá, não têm um amigo?”

Quando me dizem que não devo ir sozinha a conduzir até ao hospital eu acho que devo chamar um táxi. Mas a Enfermeira continuou a insistir, que eu devia arrancar algum amigo do trabalho, chamar um ente querido do outro ponto do país ou quiçá mandar vir a minha mana do Canadá para me ver levar 3 pontos.
Eu tenho a certeza no meu coração que se precisa-se que alguém lá fosse bastava um telefonema, podia começar no topo da lista, mas é realmente necessário chamar alguém para fazer algo que eu posso fazer sozinha?

Porque é que alguém tem de perder meio-dia de trabalho quando com 3€ eu simplesmente pago um táxi?

Hoje confrontaram-me novamente com essa “doença” de que padeço. “ A sério, não tem ninguém que lhe possa ir lá receber o técnico?”  E de novo esse olhar de compaixão. “Coitada, não tem cá ninguém…pobre rapariga.”

Porque é que tomar decisões, fazer coisas e estar-se sozinha, sendo-se menina ou uma jovem mulher adquire em certos momentos essa aura de desgraça? Tenho de ser dependente de algo ou de alguém, preciso de alguma certificação social?

É assim tão estranho no mundo de hoje, um mundo em que estamos em constante rotação, entrando e saindo, mudando…

Parece então doença, uma síndrome. Uma daquelas coisas que não se sabe de onde vem e que nos afeta a nível funcional. Que não afetaria se todos fizessem o trabalho como esperado, às horas planeadas.

Se não houvessem expressões de desapontamento, nem olhares de pena.

Não, não sofro de autocomiseração. Estou aqui sozinha. Isso é diferente de estar aqui solitária!


quinta-feira, março 06, 2014

Cadernos da Cidade Nova I


Mudei-me para aqui,  bem podia ter sido para Marte, que eu à Lua ainda conheço as fases. Deste sítio nada. Só o lugar que ocupa no mapa e o semblante visto ao longe, no cimo da colina. 

Este sitio é como aquela pessoa com quem toda a vida nos cruzamos na rua e nunca soubemos quem é. Dissemos-lhe bom dia, boa tarde, um sorriso num dia de verão, mais nada.

Hoje subi a encosta a correr, entrei na artéria principal e continuei pelo planalto, pelas ruas estreitas, pelas vielas, pelo reino do gótico. Não conheces as ruas antes de lhes ter pisado a calçada, antes de sentires a mistura do ar, do cheiro do jantar que se desprende das casas ou do pão que torra no café. Esse cheiro da vivência que envolve o das árvores, os escapes e a neblina que sobe do rio em fim de tarde.

Não conheces os sítios antes de os sentires a pulsar, a vibrar debaixo dos pés antes de distinguires os sons, e veres as esquinas, os sítios onde não foste mas podes ir.

Correr. Aqui, ou no outro lado do Atlântico continua a ser a maneira mais fiel de conhecer uma cidade.

***

Estou a ressacar de pessoas. Ainda que a rua esteja cheia de Humanidade, eu preciso de pessoas, das minhas. De pessoas de quem eu não posso duvidar, de expressões conhecidas, de gargalhadas altas e sinceras, de ter espaço e de ser eu. Eu entre os meus pares, entre tantos anos de afinidades, de cumplicidade. Estou a ressacar das minhas pessoas.

Aqui em Marte são todos desconhecidos. Hoje vi esplanadas, achei-as interessantes, talvez me vá lá sentar. Ai pensei nessa coisa complexa que é conhecer pessoas, da espontaneidade. Antigamente isso era fácil, na escola ou  nas noites de copos, o amigo que apresenta o outro amigo, um mundo de tempo e possibilidades.

E agora, como se conhecem pessoas? Como se descobre afinidades? Agora que a paciência é pouca, o tempo ainda menos e a nossa exigência maior. Crescemos e não temos mais tempo para o erro, não temos mais espaço para a desilusão, para escrutinar rostos ou desvendar personalidades. Pisar terrenos movediços, pessoas. As pessoas são difíceis. E como descobrir pessoas no meio de tanta Humanidade?

*** 

Depois conhecemos pessoas que têm muros altos, são autênticas fortalezas. Um império solene, vivem na mais perfeita solidão.

Que não nos permitem entrar, mas que nos convidam a espreitar cá de fora. Que embora nos mostrem a riqueza do seu ser, nos emprestem por momentos a chave e nos deixem permanecer por instantes, no fim do dia sempre vão encerrar as suas portas.

São normalmente encantadores. Falam muito, comunicam pouco. Prendem-nos por momentos nessa áurea misteriosa. E nós por instantes achamos que vamos conseguir entrar, estamos já apaixonados por esse admirável mundo interior…presos. Porque são intensas, e saborosas tornam-nos insaciáveis...

Mas são fortalezas. Estão perpétuamente encerradas.
Só nos resta a certeza que nunca se darão a nós, devemos parar antes que se tornem corrosivas.

Em tempos achei que queria ser assim, auto-suficiente e  inalcançável.

Não sei mais se quero. Conhecer alguém e permitir que nos conheçam é um processo maravilhoso de criação de laços.

Orgulhosamente sós…é com viver “La grade Belleza”, freneticamente no agora. 
Uma vida sem estória no meio de tantas histórias.



quarta-feira, março 05, 2014

Ensaios sobre a memória II


“Ainda há pouco a minha mente vagueou até ti. A rever uma e outra vez. Incessantemente. O principio, o meio e o fim da história. Escrutinando, procurando esse momento tão específico, essa razão crucial, o princípio do fim das coisas. A resposta para todas as perguntas, uma justificação para aquilo que o absurdo não satisfaz. Às vezes vagueio assim.

Gosto de pensar que há histórias maiores que a vida, ou que valem uma vida por si. Como se tudo o resto só tivesse início nessa fundação, alicerces fundos, às vezes dolorosos mas capazes, feitos para durar e suportar tudo o resto.

Porque se sobrevivemos a essa derrocada, ficaremos para sempre de pé, muito para lá do fim dos tempos, dos limites do nosso ser. Ficaremos.

Às vezes sinto uma vontade enorme de conversar, de te contar coisas, de rir. Só de rir. Porque riamos tanto. Á vezes é uma vontade tão grande que apetece gritar, é mais que física, é existencial.

E depois as saudades de todas as primeiras coisas que não fizemos, de tudo o que vamos vivendo e não estamos, não somos, não.

Às vezes vagueio até ti e imagino que tínhamos sido mais humildes, menos nós mesmos, mais outras coisas. Às vezes gostava que estivesses aqui.

Gostava que nos conhecêssemos agora, que tropeçássemos um no outro na esquina de uma rua movimentada, que fossemos beber um café como dois estranhos e começássemos a acabar as frases um do outro sobre as coisas de que gostamos.

Gostava que o mundo pudesse recomeçar e pudéssemos ter de novo todas as coisas. Não como antes, mas agora. Sendo o que somos, tão diferentes e tão essencialmente iguais.

Às vezes vagueio até ti. Como se estivesses a meu lado, como se fosses parte. Uma parte de mim, que eu não consigo mais tocar.

Crescemos tão juntos, vejo-te em casa palavra que escrevo, e a tua presença é um sopro de brisa morna, algo que se sente mas completamente intangível.

Às vezes vagueio, Outras não preciso. É como se estivesses aqui.”


domingo, março 02, 2014

Ensaio sobre a memória I


"Fitava os pés há já algum tempo, incapaz de encarar o absurdo da sua situação. Estava sentada à beira de uma cama desconhecida, num quarto vazio, com alguém estranho. Sentia no ar um cheiro adocicado, a tabaco fumado, uma presença latente e podia ouvir todo um mundo a girar la fora, em sons familiares. 
Tentava em vão avaliar a sua situação, o lapso de tempo que lhe faltava. Que estava a fazer ali? Passou as mãos diligentemente pelo corpo escrutinando-se, nada lhe faltava, nem um rasgo na seda da pele, e no entanto no seu interior sentia-se profundamente dilacerada.

 ¤¤¤

Não entendia o fascínio do mundo por esse tipo de casualidades, tinha de se conformar. Agora que caminhava pelo frio da manhã, de cara mal lavada e cabelo desgrenhado, simplesmente não compreendia. Nesse lapso de tempo que lhe faltava alguém havia satisfeito o seu desejo, ela a sua curiosidade e pela manhã, fria de um inverno penoso, os corpos quentes e desconhecidos, que por instantes estiveram juntos cumprindo um ritual de instinto básico, voltaram a ser só corpos quentes e desconhecidos. Se se dedicasse ao silêncio tempo suficiente, podia simplesmente não ter acontecido. Nem isso, nem essa linha aleatória de tempo que junta vontades. O desejo e a curiosidade... 

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Passados tantos anos ainda poderia destingui-lo no meio de uma multidão. Apaixonara-se primeiro pelo seu cheiro, essa mistura única de pele, de alma, de perfume e sabonete de banho. Essa mistura pessoal de vivências, de fumo de tabaco e do ar da cidade. Uma essência mais forte por detrás das orelhas, mais intensa na parte de dentro do pulso, o cheiro da intimidade. 
E no entanto a imagem dele esbatia-se já na sua mente, como uma fotografia a sumir-se amarelecida pelo tempo. Tinha tido uma passagem tão breve na sua vida, tinha sido como um sonho numa noite de Verão. 
Num momento estava tão junto a si, tão próximo, tão real e num outro tinha-se desvanecido, sem deixar marcas ou testemunhos, sem arqueologia possível, sem documentação. Uma inexistência. 
Sobra-lhe o cheiro de lembrança, poderia reconhece-lo, na brisa pela manhã, no tabaco a vaguear pelas ruas em determinadas temperaturas, em dias temperados pela humidade das ervas, ou no pico seco do Verão. 

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Gostava de viajar assim, de comboio, sentada à janela. Sentia sempre que a sua mente se libertava com os solavancos ritmados das carruagens. Se soltava para lá dos montes e vales, de verde e azul a perder de vista e todos aqueles sitios, apeadeiros e estações perdidas, nostálgicas, eram um vácuo de tempo.
Os anos haviam sido justos consigo, apesar das mãos engelhadas, do cabelo a perder cor e de uma vista cansada, movia-se ainda com agilidade e a sua mente estava sã. Dava-se por isso ao luxo de viajar sem rumo, de visitas a termas, a retiros em locais silenciosos, onde pudesse estar só, longe do mundo que a solicitava a todo o momento, deixar-se estar e recordar. 

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Esporadicamente, lembra-se do seu cheiro. Tantos anos passados e ainda se voltava à passagem de um estranho que lhe parecia familiar. Às vezes um trejeito no sorriso, lembrava-se de pequenos pormenores, havia já esquecido o todo, e embora não lhe enchesse de angústia, tinha já compreendido que não o veria mais, que não poderia reviver aquela história, no entanto nos últimos anos, com o aproximar do anoitecer da vida, sentia-se mais próxima daquela memória. Como se ter vivido aquele turbilhão de sentimentos legitimasse a sua existência.  Era como se só por aquele breve momento no tempo ter acontecido, todos os outros anos, todas as outras horas se tornassem válidas. 

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Estranhamente na altura não tinha sentido aquele episódio assim, nunca achara que aquele momento a iria acompanhar pela vida, uma decisão impensada, um impulso nada seu. Como se por um momento se tivesse simplesmente permitido ser um ser leve, desprovido de consciência, de crenças e de toda a preocupação. Acedeu a um convite, e depois a outro, permitiu-se à situação. 
Lembra-se de um nervosismo juvenil que a invadia, de uma certa vergonha, de não saber o que fazer com as mãos. E depois num momento estavam ali, permitiu-se a ser simplesmente feliz. Lembra-se dessa sensação de pura felicidade, da luz desse dia. 
Lembra-se da confusão dentro de si depois, como uma ressaca que a atormentou por dias, e depois o silêncio interior, o esbatimento das lembranças. A negação. 

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Estava absorta nesse mar, o comboio continuava ritmado até que parou num pequeno apeadeiro. Uma voz rufenha anunciou uma pausa na viagem. A carruagem meio vazia agitou-se com saidas e entradas, e ela podia ver da janela os azuleijos do lugar, as mães de preto a desperdir-se, outras a abrir o coração aos regressos. 
Então sem aviso o seu coração parou de bater...por segundos ficou suspenso para voltar a si num respirar fundo e aflito. E quando conseguiu soltar-se dessa sensação de que estava paralizada voltou-se, desaparecia na porta da carruagem um vulto, de fato preto. 
Atrás de si deixara um rasto de cheiro familiar.